quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Somos nós

Somos nós que passamos pelo escuro
onde vive o povo pobre e doente

Somos nós a classe média obediente
às ordens dos que mandam sem mandar

Somos nós que temperamos o país
Que ao desbarato foi vendido

Somos nós que exploramos o trabalho
e vergamos, aos tolos, a cerviz

Somos feitos da canalha donde vimos
aprendemos a lidar com a desordem

Somos nós indispensáveis a quem manda
para que tudo continue na mesma

Somos nós algozes sendo vítimas
no rolo compressor estamos a meio

Se isto um dia estourar pelas costuras
a canalha dirá que somos pulhas

Somos nós que instituímos o progresso
no corpo social criamos abcesso

Mas não sabíamos que a velha teoria
teria uma prática controversa

Não víamos o futuro através deste presente
nem apostamos nos valores do passado

Somos nós que incensamos insensatos
e sorrimos quando a louça fica em cacos

Somos nós os queixumes colectivos
Que motivamos os roubos, os assaltos

O gamanço, a heroína, a falcatrua
O arrendamento da mentira, a mulher nua

E nunca somos responsáveis da derrota
E não nos revemos na greve nem na luta

Somos nós que fizemos o infantário
para que o trabalho não fosse interrompido

Somos nós que pagamos os incêndios
mas não apagamos erros cometidos

Somos nós que fabricamos as verdades
as justiças a meio e as desigualdades

Somos nós que sacrificamos o país
em nome do nosso sacrifício

Somos nós que construímos de raiz
a fábrica do mal, a fábrica do vício ...

Somos nós os últimos da Europa?
Porquê?

Será por causa dos governantes que temos?
Será porque os Doutores, Engenheiros, Diplomatas, Banqueiros
são portugueses?
Mas os homens do Dinheiro não têm nacionalidade, nem Pátria.
Será porque os padres, freiras, dirigentes do futebol,
os correios, a televisão, os comboios, o cimento,
estão sem pátria como os donos dos hotéis, das estradas,
como os locutores, os patrões das Câmaras, das Juntas,
como os agentes funerários, os hiper-mercados, as polícias
e as clínicas privadas?
Os gestores comerciais que temos
os ladrões e as ladras que temos
os árbitros e outros juizes que temos
o juízo que já não temos
as pensões e restaurantes que temos
os telefones públicos que temos
os mestres de obras que temos
os sindicatos amarelos que temos
os fulanos dos impostos, paneleiros que temos
as senhoras das finanças, as putas que temos
e todos aqueles que roçam as costas nas ante-câmaras
e os cotovelos nas secretárias, as meninas nuas
a mexerem as pernas nos palcos que temos
e os ministros que temos agora e alguns dos outros
que já tivemos ... só têm esta prática porque ainda não roubaram o
[suficiente
para mudar de país ...

Diz-se, porém, que já fomos bons em muita coisa:
Tínhamos o melhor azeite do mundo
o melhor trigo, quando a farinha não vinha de Espanha
com sete meses de camião frigorífico ...
Tínhamos o sol mais lindo do Mundo
e a Rosa Mota a fugir à polícia era imbatível
o Vinho mais bem tratado e envelhecido
As aldeias mais catitas do planeta
a água mais benéfica da Europa, as tangerinas e as castanhas
o luar, a poesia, e os touros que não morriam na arena
Tínhamos o fogo preso, a cor das flores,
os frutos verdadeiros, a língua da sogra e os pastéis de Belém,
os tremoços de alguidar, as amendoeiras em flor,
os bonecos de barro, o cagão e o pescador, o frade das Caldas,
o Zé Povinho, os azulejos parolos: se queres fiado: toma!
O medronho, as Cavacas, as ginginhas pela manhã,
O pão de ló, as barricas de ovos moles,
a sardinha assada, as pagelas da comunhão, os terços de
[alfarroba,
os garnizés, os moliceiros, o presunto de Lamego,
as cantigas ao desafio, o barco rabelo, as tasquinhas do porto,
o granito da Madalena, o caralho das Caldas
o Carlinhos da Sé, os Zés Pereiras, as procissões cantadas,
as bandas de música no jardim, o estilo manuelino,
o Vasco Santana e o Hoquei em Patins ...
Mas isto tudo nunca soubemos enaltecer o que tinha de beleza
[simples
de original e Agora?
somos os últimos de quê? Da Europa da droga e da promiscuidade
política? Agora atiram-nos com um osso roído,
e uma côdea de pão seco ressequido
e olham-nos como dantes nós olhávamos para os pretos ...


Fernando Morais, Caderno nº 29

Sem comentários: