quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Tardígrado

eu tardo:
retardo na cabeça
em petardo
de versos
adversos.


e é contra mim próprio
que os guardo:
eu tardo.


António Vitorino, Caderno nº 14

Um poético barrete (verde)

“Outros vejo por aí
A que se acha mal o fundo,
Que andam emendando o mundo
E não se emendam a si”

Camões


é bom ser original
artista e ser poeta
melhor ainda: profeta
para emendar o mal

assim poetas profetas
originais e artistas
não há já quem lhes resista
e às suas rimas dilectas

rimas com que bem dizimam
os néscios os idiotas:
só lhes infligem derrotas
até mesmo se não rimam

para isso existem: pois
vieram para lidar
com tolos e fustigar
suas cabeças de bois

também eu affonso vi
a farpa destes profundos
que andam emendando mundos
e não se emendam a si


Affonso Gallo, Caderno nº 14

"Quem canta seus males espanta"

a dor
é sempre maior
é um sol maior
que arde de dor
quando nós cantamos
a dor?

mentira.
é sempre mentira.
a dor é maior
só quando calamos
só quando encontramos
e a cultivamos
no fundo de nós:
a dor.

cantar é sarar.


António Vitorino, Caderno nº 14

Nada

ser poeta é
fazer de conta
que se faz de conta
e fazendo de conta
que se faz de conta
fazer de conta
que se faz de conta
fazendo de conta
que se faz de conta,
etc.



isto mesmo já o disse
fernando 5
pessoa 4
noves fora:


António Vitorino, Caderno nº 14

E safa-se

é chato?
ser chato?
depende
do que entendemos por chato.
um chato
agarra-se ao chão
outro chato
agarra-se a ti.
o chato que se agarra ao chão
passa despercebido
porque é chato
depende
e safa-se.
o chato que se agarra a ti
não te faz passar despercebido
porque é chato
depende
e safa-se.

um chato é plano e horizontal
depende do seu habitat
que é o chão
e safa-se.
o outro é quase vertical
depende do seu habitat
que és tu
e safa-se.


António Vitorino, Caderno nº 14

Maçã

a vida é uma eterna maçã
que cada um de nós há-de comer
até ao fim ou até onde der
para trincar: a vida não é vã

existe da maçã o eterno bicho
que à vida chega primeiro que nós:
enojados desse tal bicho atroz
atiramos a maçã para o lixo


Affonso Gallo, Caderno nº 14

Homenagem ao artista

como dizia um amigo meu
o verdadeiro artista
é aquele que come alpista.
ele dizia isso só para rimar
mas tinha razão:
o verdadeiro artista
além de autista
só é artista
para que lhe dêem a sua ração
de alpista
digo eu.
(então? aplausos para o artista!)


António Vitorino, Caderno nº 14

Tentativa e erro

quando era criança
tentei enxertar na terra um pessegueiro.
ele não cresceu:
a terra era boa
o que me faltou foi o talento.
não faz mal:
era só um capricho
eu não gosto de pêssegos.

agora que sou adulto
enxerto nesta terra os meus versos.
não sei se vão crescer:
a terra não é boa
mas dizem-me que tenho talento.
não faz mal:
é só um capricho
pelo menos tento.


António Vitorino, Caderno nº 14

Profeta?

não te baste afirmá-lo
melhor é mesmo sê-lo
e ainda que o sejas
melhor é calá-lo.
a tua verdade
te deve bastar:
afirma tão-só
a tua verdade.
sê para o tempo presente
um poeta
(o que já não é pouco
no tempo presente)
e deixa que o tempo
se encarregue de mostrar
e demonstrar
se a tua verdade
além de ser hoje a tua verdade
(o que já não é pouco)
virá também a ser uma outra
verdade.

ninguém é profeta
no seu próprio tempo.


António Vitorino, Caderno nº 14

Veneno

há um veneno
com que me trato:
é o vinho
amargo
e obscuro
da poesia.

ainda não sei
para que serve
que outra utilidade
terá
teria
ou poderá ter.

mas serve para mim
nos dias
e nas noites
em que serve:

quando um outro
que sou eu
aqui escreve.


António Vitorino, Caderno nº 14

VIII

estou sentado


à volta de um rosto
virado para um eixo
assimétrico de azul
além da janela,


além da parede sombria, gretada;
dentro do estuque,
outros olhos
viram-se para outra janela.


visito o azul recortado na cal
em vias de recuperar os sentidos,
algures
um barco parece navegar no céu
de súbito, [o rasgar do véu
de Maya]



irrompem vozes da parede
as palavras voam
entrecruzando-se com o ruído branco
após horas seculares, o retorno ...
estar sentado sem rosto
num fim de tarde
perante um céu e um rio
uma cidade camuflada em ambos


Alfama, Lisboa


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

VII

de um devaneio nasce o encanto
do teu rosto
nítido noutras eras;
teus gestos serenos de criança
propagam-se além ...


nas fontes da cidade nossa
dou-nos de beber
o néctar fugidio de deuses
que outrora fomos ...

mas já não há pirolitos
e
do teu veneno
recebo as lágrimas que me
faltam


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

Foco

faço questão de perguntar as horas
a espaços ...
e todas as respostas (sabem / cheiram)
soam a um facto consumado.
a austeridade da expressão: - são
nove horas e
quarenta e
dois minutos –
transmite per si segurança.
e um certo orgulho.
fito o olhar convicto dos
inquiridos inundado de coisas sábias

sobeja tempo cartesiano
expressões lineares em função do limite.

foco.

percorro corredores de hospitais durante
as horas de visita.
entro no metropolitano em horas mortas.
percorro túneis luz baça neon parando
para ler legendas específicas avulso

a seguir há um rio (obrigatório haver no
conjunto das etapas do trajecto)

medidas prévias para um desenlace positivo
escalas em focos
de som / intensidade luminosa / /

foco.

faço reparações esporádicas no uniforme de
soldado ...
leio um manual de
eficácia comprovada pelo eco
remetido para um conjunto de edifícios
indiferenciados de –
certo um subúrbio ...

o pai faleceu após doença prolongada
enquanto ela
jogava TETRIS num salão de jogos ...

esse tempo todo
recuperou lemas base, paradigmas sólidos à
custa de uma boa dose de barbitúricos

insuportável tiritar dos relógios. já perdi tempo
não surge
não há nada sobre as formas de dizer isto
não
não é isto é tempo

contar até mais infinito desfocar
e que os ponteiros parem! ...


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

V

cansas as pestanas contra
luz dos faróis de irrisão lusco fusco a
descer o céu contra as superfícies duras
dos arbustos e do lixo.
as maçãs apodrecidas do rosto inflamam-se
para de súbito logo
morrerem quase no cume das torres.

desvirtuaste o jogo rompendo a elementar
regra do silêncio
submetendo-nos às agressões à vocalização
banal
lateralizaste os olhos sendo o protagonista
inicial da fuga ao primeiro embate
a abreviatura fácil do medo
e assim perdemos por desistência
a prima batalha.

o incomparável som arrancado à harpa
a ferros impondo-se aquando
da esperança despedaçares
a cabeça contra os livros empilhados
na bagunça da sala ...

a cabeça de vidro de um filósofo
a rolar pela primeira palavra
soletrada a custo
durante a sodomia
e
aí vi que experimentavas como uma droga
nova
meu corpo caído chão de mármore

pronuncio-te na saliva e pertences-me ao
avistar a primeira cabina telefónica
impondo uma segunda tentativa
o apitar intermitente
--- o farol --- a faca
enterrada nos joelhos
transporta o branco das rótulas a contra
luz ao contrário de outros globos de sombra

superaste a anestesia do ar suponho
antes de adormecer sozinho quase
manhã sem esquecimentos ...
e o
silêncio violou-me o sonho enrodilhado
a perguntar ao sono o teu nome


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

IV

e se o poema
desse a volta ao mundo
arruinando babel ...
escrito onde um golpe
de asa fosse o bastante:

o planar do albatroz
vírgula que circula livre
na imensa folha ...

...

anjos dementes tatuados
num manto de cocaína


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

Mãe

Nasci.
rasgaram-me de dentro de ti
rasgando-te

e nasci ...

mas ainda não descobri o significado
do fogo com que Prometeu nos incendeia.


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

II

a meu lado sufocas a noite
com pormenores de sonhos
as pálpebras cerradas derramando
negrume
no meu sinuoso velar
de insónia para insónia
enlevo o gesto do teu sono
até à derrocada do cansaço
das mãos perdi o sentido
para ganhar um corpo espoliado
que não sabe tocar senão gumes


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

I

das ruas desertas renasço
sem que as mortes
me abandonem
ou outros
lábios me acalmem a saudade

pelos olhos
turvos de paixão e de fel
contamino a alma

voyeur desta cidade
que espelha nos neons
os seus moribundos


João Vasco Henriques, Caderno nº 13

Lorelei

Teus beijos fatais
São carícias tais
São cantos mortais

Meus olhos, engano
Em desejo profano
São grito insano

Teu corpo, pedra dura
Tua carne tão pura
Jura, jura, jura

Teus braços em cruz
recebem-me, eu sei.
São pecados de luz,
Lorelei

Teu rosto, ilusão
Nos teus olhos o perdão
Martírio, então

Teus lábios mereço
Tão sentido esqueço
Em teu seio pereço

Teus braços em cruz
recebem-me, eu sei.
São pecados de luz,
Lorelei


Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

Neste pranto

Um rosto proibido
na distância do adeus.
Um sorriso tão querido
perdido aos olhos meus.
Palavras que não são.
Pensamentos por dizer.
Neste canto de solidão
mesmo à beira do perder

E a luz cai-me dos olhos
num lago por desenhar.
O seu fundo são escolhos
de um verbo por inventar

Triste brilho de cristal
no meu rosto a bailar
É apenas água e sal
entre o partir e o deixar
E resta só um grito mudo,
como que um céu a estalar
A noite cai e é tudo,neste meu mundo a mudar.

Dos meus olhos a luz cai
num lago por desenhar.
É um pranto que se esvai
do meu sonho a sangrar.

Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

Alice

Criança, tão terna a idade
E o seu nome é Alice
Falou para mais que só um
Ninguém ouviu o que disse

Criança é como as outras
Só um nada diferente
Não basta para a teres
Por menos que inocente

Tem sonhos como os outros
É legítimo sonhar
Sonha com mundo e vontades
E desejo de os realizar

Mas o seu nome é Alice
A dos sonhos feitos nada
Criança, tão terna a idade
E hoje foi violada


Paulo "Aelin" Moreira

Silhuetas da escuridão

Entre águas passadas
E luzes na escuridão
Alguém geme de medo
E pede a nossa atenção
Não sabes o que fazer?
Queres continuar em frente
Também tu tens medo
Por isso te finges ausente

Mas ama irmã
Não custa mais que um beijo
Mas ama irmão
É mais que um desejo

Assim... estende a mão olhando
Entre luzes na escuridão
Presenteia as silhuetas
Como o gosto da afirmação

Mas ama irmã
Não custa mais que um beijo
Mas ama irmão
É mais que um desejo


Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

(Espectro) sem nome

Batem e rebatem, as contas de metal,
tristeza pintada a rabiscos em papel.
O seu ritmo constante, a cadência fatal,
murmura os instantes do teu riso cruel.

E apenas sabendo
quanto me fazes sofrer,
as contas de metal
vão parar de bater

Correm e recorrem, as contas de metal,
despem a tua capa em vícios envolta.
Gritam a tua alma, a crueza sem igual
e dói-me no estômago um sabor a revolta.

E apenas sentindo
quanto me fazes perder,
as contas de cristal
vão parar de correr.

Batem e rebatem, as contas de metal,
gravando em fogo, poesia letal.
São ecos sem nome, passeiam pelo ar,
é o espectro da fuga que me quer sufocar.

E apenas gritando
o quanto me fazes doer,
as contas de metal
vão parar de bater.


Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

Mágoa de criança (tradução sobre poema de Wiiliam Blake)

Minha mãe gemeu! Meu pai choro.
Para o perigoso mundo eu era nascido;
Indefeso, nu, gritando alto;
Como o mal em nuvens escondido.

Debatendo-me nas mãos de meus pais;
Contra a apertada fralda em esperneio:
Vencido e cansado achei melhor
Sugar de minha mãe o seio.


Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

Coro de lágrimas

Há flores que ardem, há flores que choram
São vidas que partem, são olhos que imploram
Castelos sem vida, senhores sem sorte
A esperança esquecida em terras de morte
Estilhaços perdidos da nova madrugada
São sonhos vencidos na noite chegada

Um breu assim eterno, qual rosa d’Inverno
É lago onde os sonhos morrem e as lágrimas correm

Senhores do Norte, de pé ao alvorecer
Senhores na morte sobre o sangue a correr
E limpar dos olhos o pó do caminho
Apagar todos os fogos, enfrentar o destino
Pois por montes e vales o grito ecoou
Perca-se a tormenta, o Rei voltou

Da noite caiu o pano, perdido o engano
A vitória soou e a esperança reinou


Paulo "Aelin" Moreira, Caderno nº 12

Desta culpa

O meu nome é nada,
vida desesperada.
O meu nome é vazio,
a vida por um fio
O perdão foi negado
na noite por acabar.
Na terra, por matar,
O meu nome abandonado

São portas fechadas,
verdades reveladas.
Ruas de água e pó
em que vagueio só.

O teu nome é nada,
inocência roubada.
O teu nome é desencanto,
apenas lágrimas, pranto.
É pecado, perdição!
Gritaste e eu escutei.
Mas tu sabes que amei,
mesmo sem salvação.

São portas fechadas,
verdades enterradas.
Desta culpa fica a dor.
Desta culpa só fica a dor


Paulo "Aelin" Moreira; Caderno nº 12

Poema de sexta-feira

Na rua fazemos cultura
As verdades são ditas na galhofa
Isto está mal – Diz o povo
Alarga-se a corda ao endinheirado
Aperta-se o cinto ao coitado

Por cada lagosta suada
Deixa-se o pobre sem nada
Já chega de sofrimento e lamúrias
Vamos bater o pé à miséria
Está na hora da revolta
Antes que o fisco nos bata à porta.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Dois poemas com pés de galinha

Sinto o cheiro do mar
que hoje me lava a cara
esparralhado sobre o muro
que me separa da vida e da morte

Levo também com o vento na tromba
mas isso só faz
espevitar as entranhas

Vou a pé por aqui e ali
como quem sabe onde quer ir
mas nenhum lugar espera por mim

Sou um refugiado sem pátria
sem nacionalidade

sem país
órfão de alma
por ti vou lutar e morrer
sem ti não sou nada Maria

Tudo são lágrimas que todos choramos
mortes que outrora não eram
o rebentar das bombas sobre paredes sem tectos
crianças sem braços

mães que sofrem tanto
que só conhecem a dor
a tristeza e o desespero

Homens que lutam
sem saber porquê
por quem
nem tão pouco se vale a pena
no final morrem pelo petróleo pela vaselina
que ajuda a deslizar tudo e todos para o abismo

Estou tão farto da hipocrisia humana
da mentira institucional e dos enganos políticos
até das marchas populares

A democracia está gasta
Só serve os interesses pontuais dos democratas
[com fatos Armani
óculos Cardin e malas Lacoste.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Logo

Quantas vezes eu ouvi baterem à porta
Quantos passos incertos
Batendo naqueles degraus de mármore seco
Quantas esperanças vãs eu não senti
Dentro de mim
Todos os mundos que eu sonhei
Todas as fugas que planeei
Tudo isso e nada mais

Logo, quando desvanecido de ilusões
Caindo triste
Fora de mim
Outro dia nascia
E os mesmos passos
Mais sonhos
Tudo isso e nada mais

Agora olho o sol
E tudo o que me rodeia
Já não sou o mesmo mar
Sou um leito seco de um ribeiro
Prestes a desaparecer
Inunda-me só a confusão
Custa-me a criar

Pergunto, que erro miserável
Digno de tal castigo
Merecido a lei de Deus
E não dos homens
Eu cometi
Sinto-me tão arrependido
Tão pobre, perdido

Que ajuda vou eu dar
A mim próprio
A que tábua me vou agarrar
Para renascer
Não sei mais o que desejo.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Liberdade

A inspiração vou buscá-la
Nos fundos da música
No espangir dos pratos
E no som

Como o leito
Doce e manso de um ribeiro
Tombando em cascata
Em manchas disformes
De verde e rosa

Cercanias cobertas
Paisagem tropical
Beija sol
Vá – Faz por favor
Queima-me a carne
Com os teus raios
Que me mantêm vivo

Animais velozes
Corsas gazelas
Correi atrás da paisagem
Ide a ela
Toquem-lhe
Com as vossas hastes cortantes
Mais e mais

Branco da areia
Deserto
Morte
A que mundo seremos transportados
Sem fim
Mais e mais
Todo o tempo
Mais e mais
Todo o tempo
Mais e mais.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Toca toca telefone toca

São trinta dias num mês
Continuo sem marcação outra vez
Passo horas encostado ao telefone
O silêncio é forte
Entra devagarinho como a morte
Vem em vagas demoradas
Sozinhas ou acompanhadas
É sempre indiferente

O sol nasce e corre os céus
Agora já é tarde
À noite o telefone
Não toca mesmo
Vou-me deitar
A cantar e assobiar
Para quebrar o silêncio.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Todo o tempo

Negro vem
Não tenhas medo
Deixa o tempo estar perto

Doido frio
Leva-me
Através das tuas estradas
Vales e planícies
Mais e mais
Todo o tempo

Agora põe-me fora
Reza por mim
Mas não tenhas
Nunca
Piedade
E quando eu morrer
Quando eu partir
Lava-me por aí
Vamos para
O Oeste bravo
Cantar e Dançar

Dá a liberdade
O que eu penso
É que não tenho sorte
Para viver
E vai naturalmente

Aí vem o diabo
E mais e mais
Todo o tempo
Não quer ir livremente
Quer ir naturalmente
Deixem-no ir
Haverá sempre
Uma hipótese
De o levar
Todo o tempo
Mais e mais.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

Linhas cruzadas

Cruzam-se linhas trocadas
Estão demoradas, já não funcionam
Qualquer número indicado, quando ligado
Está errado

Estou, estou, quem fala
Eu queria falar com Deus se for possível
Mesmo que seja a pagar no destino
Por favor só quero encontrar alguém do outro lado
Quero ouvir uma resposta certa
Qualquer coisa que me forneça uma meta
Ou me diga quem eu sou

Respondem que eu não estou
Ligue mais tarde
Amanhã estou em reunião
Para a semana vou de avião
Num sítio sem captação

Quando eu voltar
Pode ligar outra vez
Quem sabe provavelmente
Consegue-me apanhar

O Dr. não está nem vai estar
Se calhar desta vez
Não vale a pena voltar a ligar

Tente daqui a um mês
Se tiver sorte talvez
Ou deixe um recado
Outra vez.


Jorge Fialho, Caderno nº 11

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Meditação

O vento
fez bailar as folhas das palmeiras;
O mar bramiu, medonho, o seu lamento
e no ocaso o Sol se afogou.
Na Terra
apenas eu, frio e tristonho,
fiquei parado neste meu tormento
de não conseguir ser o que não sou.


Mendonça Ferreira, Caderno nº 10

Procissão

Passava a Procissão,
cada vela era um altar,
cada chama uma oração.

E a chama da tua vela
tremeluzia e brilhava
com cintilações de estrela.

E a chama que ali luzia
fazia antes lembrar
o alvor duma alegria.

...............

Já vai longe a Procissão,
cada vela é um altar,
cada chama uma oração.


Mendonça Ferreira, Caderno nº 10

Conselho

Não lutes com a vida
por nada te oferecer:
Chorar?
De nada serve, podes crer;
Fugir?
A vida acaba sempre por te ver;
Gritar?
Mesmo que grites não deixas de sofrer;
Mentir?
Esperança vã que acabas por perder;
Viver?
Mas é isso o que tens sem quereres ter;
Morrer?
Morrendo sim, então podes ganhar
à vida ingrata que nada te quis dar.


Mendonça Ferreira, Caderno nº 10

Patim

Roda, roda sempre,
vai rodando,
a tua sina é rodar,
teu triste fado é correr,
deslizando,
sem nunca, nunca, parar.

Tal como tu é o Mundo,
sempre andando,
anos após anos a rolar
e atrás dele, também correndo,
voando,
a nossa vida, tremendo,
com medo de o deixar.


Mendonça Ferreira, Caderno nº 10

Castelo da morte

Meia noite toca no
Castelo da Morte
Três pancadas soam fortes
No Castelo da Morte

Tal templo mostrava
Longos hinos dos mortais
Pelos quais os condenais
No Castelo da Morte

São murmúrios, são vozes
São mil rostos atrozes
Mil pedaços das almas perdidas
São pecados, são incestos
São mil gritos aflitos
Tal e qual como Deus
previu e condenou
E o criador dos fantoches aprovou

Naquele castelo todos são julgados
Uns com esperança outros sem lembrança
Vidas passadas mal amadas
naquele castelo da noite ingrata.


Lino Átila, Caderno nº 10

Arbusto

Ao longe a tua gargalhada
Reconheci
Provocações à vontade de
Querer ir ter contigo.
Estar contigo.

Ganhei coragem!

Subi a uma árvore
Para te ver
Mas como não te vi, desci.
Estavas atrás de um arbusto
Ai que susto.

E tu riste.


Lino Átila, Caderno nº 10

Vi um anjo com

Vi um anjo com
Uma flecha e um arco
A minha prece disse
Não tenho asas para voar

Medo da Luz
Medo do Negro
Medo do Começo
Medo do Fim
da estrela cadente

Asas de desejo
Velas ao vento
Eu sei como te sentes


Lino Átila, Caderno nº 10

Por vezes ao acordar

Por vezes ao acordar
Trago em mim
Sentimentos de fúria
Ilusões de alguém que
ainda não aprendeu a
viver

Por fim o esquecimento
é a única dor que
me abraça na chuva
que cai mais uma vez.


Lino Átila, Caderno nº 10
Café com Letras, 27/06/2003

Silêncios II

é com o olhar sempre em ti
que revelo este silêncio
e é estando sempre aqui
que me sinto bem propêncio

é aqui e é ali
o meio da desventura
alguém que fica aqui
crendo na tua candura

e és fêmea,
livre e fogo
esperança e fôlego também
és etérea
livre e logo
és graça, calma e bem

és um pouco, Lua decerto
como a teu nome convém
longe então eu desperto
e a Lua olho também

no olhar nada pago
tudo fico a dever
pois o meu olhar vago
espera ainda ver-te aparecer

tiro então mais um fôlego
da vida que não paguei
a minha, esta que logo,
é toda tua por lei

se a verdade só fosse escrita ...
tudo se poderia dizer
porém, penas bem dita;
é verdade sem morrer.


João Mota, Caderno nº 10

Silêncios I

Foi nos teus silêncios
que me molhei em toda esta Água
que cresci em toda esta velhice
e curta é a estrada
em que se espalma
não uma crença
mas esta crendice

Já só aqui
e sem ter pra onde ir
olho sem ti
sem te sentir

Estás viva decerto
eu não me sei vivo até quando
o longe nunca se sente
nunca perto

o agora entretanto

...e. A noite foi-se chegando
com o seu olhar perto e calmo
decerto o futuro mudando
em cada barril ou palmo

se era então certo como nada
nada era nada também
será que a métrica agrada?
Ou não agrada a ninguém

Tenho visto tudo isto, e nada disto
percebo e porque é que eu insisto?
em tudo isto que escrevo?

Nem o Norte nem o Sul
é oposto para o amor
e se o meu coração ainda bule
Obrigado se-faz-favor.


João Mota, Caderno nº 10

Quando te vejo

Quando te vejo,
barba que não é barba,
ar encovado do esforço marcado,
roupa suja e lama em tudo,
curvado pela dor dessa azáfama de formiga,
escuro do Sol que te queimou,
de armas na mão, sempre prontas,
e pensamento no duro do amanhã,
bebendo e comendo da esperança
de que alguns te tenham na lembrança,
te olhem, te sintam e dêem
algum valor ao teu desgaste,
que me dói e também me destrói,
quando te vejo, assim,
só me apetece matá-los!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Não é certamente por acaso

Não é certamente por acaso,
que quando na penumbra te beijo,
a tua mão me envolve em doce abraço,
e a tua boca me percorre com desejo.
Não é certamente por acaso,
que quando sofro e quando grito,
nos teus olhos há a ternura que eu vejo,
nos teus actos há todo o amor que eu sinto.
Não é certamente por acaso,
que quando de ti duvido,
e quando teu toque rejeito,
o gelo derretes num segundo,
e o meu medo esvai-se com teu jeito.


Conceição Cotta, Caderno nº 9

O grito

São os rios cheios de espuma,
É a ambição desmedida,
São os animais encurralados,
É a morte ao Sol, que nos deu a vida,
São as baleias que dão à costa, em agonia,
É o discurso que transborda, na forma,
São as aves, negras do grude pesado,
que lutam em desespero mortal,
É o cheiro desagradável que insiste,
São as florestas arrasadas,
É o arfar pelo sujo ar que se respira,
São os paraísos inventados,
É a persistente neblina que abafa,
São povos inteiros em debandada,
É a claustrofobia crescente,
São as filas de gente em espera,
É o desencontro permanente,
Oiço este grito,
constantemente!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Como consegues tu viver

Como consegues tu viver,
com o dom que nem Deus tem,
de não perdoar as falhas de alguém?
Como consegues tu viver,
alheio ao sofrimento de quem,
por ti se esqueceu de si?
Como consegues tu viver,
nessa ilha povoada de ninguém,
forçar um fim inventado num Dezembro,
e julgar dispor do privilégio do esquecimento?
Como é possível conviver com o fingimento
de tudo ter acabado sem nada ter começado,
de tudo querer começar sem nada ter terminado?
Crês-te Deus sem crer em Deus!
A rigidez e o traço seguro e certo,
escondem medo a fantasmas tão reais,
que fuga alguma fará desaparecer.
Um dia, quem sabe,
num dia que não esperas,
verás nuns olhos quaisquer,
tudo o que quiseste esconder,
tão vivo e tão forte,
como se tivesse acabado de acontecer!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Quê?

Tive que baste.
De quê?
Daquilo que nos deixa
ficar em raiva contida
e permanente,
contra tudo!
Porquê?
Porque nos desarma
injustamente
e constantemente,
de tudo!
Para quê?
Para nos agarrar e dobrar
e cegar e queimar
até ao fundo
de tudo!
Tive que baste.
De quê?
De tudo!
De nada!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Uma noite

Está escuro.
Acordei agora em sobressalto,
procurei-te a meu lado
e senti o teu dormir profundo.
Não sei se foi sonho que tive,
se o sono que se foi.
Não oiço nada do lado esquerdo
e o pânico apodera-se de mim.
Salto da cama num ápice
e começo a vaguear pela casa,
em passo agitado.
Olho o relógio e noto os minutos a passar
muito devagar.
O coração bate tão depressa e tão forte
que posso medir a pulsação em qualquer parte.
Tenho muito frio
e transpiro.
Preciso de ti!
Sinto as pernas em tensão,
dor de uma corrida que não fiz.
Penso no pior de tudo,
parece não haver solução para nada.
Lembro o tempo passado e perdido,
afunda-me a felicidade que invento nos outros.
Fantasmas velhos,
que pensara para sempre desaparecidos,
perseguem-me e obrigam-me a correr ainda mais.
Olho o relógio de novo.
Será que parou?
O silêncio barulhento incomoda-me.
Oiço as cigarras no seu cantar eterno,
monótono e irritante.
Tapo os ouvidos,
embora saiba que é um movimento inútil.
Tenho medo dos meus medos.
Queria que acordasses
e me protegesses,
de mim própria.
Queria sentir o teu afago,
o teu entendimento.
Queria que me amasses tanto,
que eu não precisava de querer,
pois estavas aqui, comigo!
Mas ia roubar-te horas do teu sono,
horas tão contadas e apreciadas,
tempo que te é caro,
que não sabes o que sinto.
Não sei se pare, se ande,
não sei se vá para a cama,
se te acorde,
não sei se devo tomar qualquer coisa.
Olho o relógio mais uma vez.
Passaram cinco minutos.
Tão pouco tempo para ti,
a eternidade para mim!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Enganos

Por baixo daquele tapete vermelho,
soam meus passos de antigamente.
Cada pancada que oiço
ressoa no espaço que já vivi.
Paredes mesmas, que brancas
ouviram e calaram meus receios,
comigo choraram e esperaram
o que pensei desejar,
mas nunca chegou.
Manta verde, esperança me deste
nos dias e dias que sobre ti sofri
e ri da felicidade que antevi.
Horas e horas a fio,
ao som do besouro que nos agride
no silêncio da noite,
revi-me em deferentes e heróicos fins.
De mim não gostei
ao ponto de nem ao espelho
me consegui olhar.
Levantar-me? Para quê?
Vestir-me? Comer? Para quê?
Eu quero é não pensar!
Da minha sede abusei
quando em desespero te suplicava,
uma palavra!
Empenhei-me em acreditar em ti,
inventei várias vidas, que te ofereci.
Por muito alto que subisse,
o teu “Não sei!” sempre ouvi.
Foram anos e mais anos assim,
à espera, à espera de começar
o sonho que estava em mim.
Enganos!


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Há um olho enorme que

Há um olho enorme que
por detrás da minha janela,
da rua paralela,
das nuvens, da Lua e do Sol,
das galáxias mais longínquas,
me olha atentamente
todos os dias,
me segue constantemente
a todas as horas,
me fixa assustadoramente
minuto a minuto,
quer de dia, quer de noite.


Conceição Cotta, Caderno nº 9

As folhas ondulam suavemente

As folhas ondulam suavemente
com a brisa que sopra
em qualquer dia quente e seco,
acariciando-se naquele
rastolhar dengoso e excitante.
Sinto o calor abrasivo do sol da minha terra
e o toque suave e sensível das tuas mãos,
por toda eu.
Fecho os olhos devagar
para não quebrar a magia
que me envolve e me transporta.
Os teus lábios macios arrepiam-me,
o teu sexo decidido pressiona-me.
Deixo de ouvir,
deixo de pensar.
Uma onda gigante enrola-me,
e afoga-me.


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Dia de sol cinzento

Dia de sol cinzento,
na sombra do meu corpo
cortada pela esquina
do prédio velho e branco,
repouso do que sinto
e só eu vejo
na tua cabeça pendida.
Olhos vermelhos,
testa franzida,
em ti mergulhas teu pensar vazio e,
atento ao nada imenso à tua volta,
balbucias esforçadamente,
“tudo bem”.


Conceição Cotta, Caderno nº 9

Promessa final

Artroses, uma aqui mais outra além
o corpo vai perdendo agilidade;
o gosto em realizar, menor também,
e o Mundo a já ter pouco que me agrade;

a alma mal distingue o mal e o bem,
e pouco já me importa o que vir há-de;
vegeto mais que vivo: sou alguém,
ou coisa que vagueia p´la cidade?

Nem sou sequer o poeta que já fui
(meu estro, fatigado, vai-se embora)
– p´ra a morte me encaminho, isso é o que
[é ...

... Mas não, não me ouvireis nem ai nem ui,
que eu hei-de conseguir, chegada a hora,
morrer, tal como as árvores, de pé!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Carta a um ideal

Dizer-te que estou louco era mentir
– que eu estou velho demais p’ra endoidecer.
Não posso, pois, dizer que, se partir,
irei morrer de dor por te não ver.

Tão pouco poder-te-ia garantir
que a vida a dois feliz viria a ser;
também não sei (bem sabes!) se o Porvir
nos vai deixar sequer voltar a ver.

Não sei (quem saberá?) se o Amanhã
Nos vai trazer delícias ou tormento.
(Da vida, quem conhece toda a lei?)

Mas tenho de jurar-te, alma pagã,
que, se não me mentiste um só momento,
te sinto o Ideal que nunca achei!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Fantasia não qualificada

De longe chega o som da tua voz.
E logo sonhos meus em cavalgada,
Me assaltam, logo sou praça tomada
P’la força de fazer um só de nós.

E o cheiro da pele tua, logo após,
penetra-me, e já tenho-te enlaçada;
nos ombros, braços, seios és beijada,
e o querer-te é mais querer-te, é ânsia atroz;

e deito-me, e penetro-te, e os meus braços
te esmagam contra mim; e as tauas pernas
se enroscam pelas minhas, qual serpente.

... E quando vou ouvir teus gritos lassos
dou conta (e caio das nuvens p’ra as
[cavernas)
que estás a t’lefonar-me tão somente!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Anelo

Há quanto tempo estou já sem te ver?
A Vida assim o quer. Mas até quando?
Terei feito eu pecado tão nefando
que nem sequer perdão vai merecer?

No fundo, bem no fundo do meu ser,
e a dor de te não ver vai aumentando;
os dias, dia a dia, vão passando
– e a dor sempre a crescer, sempre a crescer.

E agora enrodilhou-se-me à razão,
e o ver-te é mais que um qu’rer, é obsessão,
tão forte como um pão de subsistência!

... E, embora ateu, eis-me a rogar na igreja
que a hora de te ver tão perto esteja
quão longa foi a dor da tua ausência!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

"Vade retro", canção

Canção que estás chegando não sei donde
e envolves o meu ser em não sei quê,
e alcanças a minha alma que se esconde
atrás do racional que o mundo vê,

p’ra quê levar-me em sonho não sei onde
se é sempre recusado amor que eu dê?
Se sabes que ao meu qu’rer ninguém
[responde,
porquê falares de amor, porquê, porquê?

Não quero ouvir-te mais, deixa-me em paz!
Sofri muito mais do que é devido,
Não vou cair de novo no engano

De querer que alguém de amar-me era capaz!
Que eu sei que amar sem ser correspondido
É dor que quase arrasa um ser humano!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Atracção

Que foi que me atraiu quando chegaste?
O corpo? Não, decerto, muito embora
se mova mais flexível que uma haste.
Seria a boca, cheia de amoras?

Ou foram esses olhos que lançaste
com gelo, e fogo, e mel, p’la sala fora?
Ou foi o ar sozinho com que entraste
de quem vive isolado em toda a hora?

Por mais que me interrogue é sempre “não”
que a alma me responde! Mas olhar-te
provoca-me uma doce embriaguez.

... E, após muito pensar, concluo então
que fui, não atraído só por parte,
mas sim por ti inteira, tal qual és!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Solidão noturna

Teus lábios, firmemente, sem tremer,
os beijos que quis dar-te congelaram;
teus olhos jovens fundo penetraram,
aqui, ali e além, todo o meu ser.

Não sei o que por lá puderam ver,
mas sei que depois disso adoçaram,
e que mais tarde os dedos enlaçaram
e contra o meu senti teu corpo a arder.

Depois surgiram sonhos de porvir;
depois surgiram beijos sem parar;
depois ...depois disseste: “deixa-me ir” ...

... E eu (louco!) deixei-te ir! ... Para ficar
de mãos e alma vazias e a fremir,
e nada mais que a noite p’ra me agarrar!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Divagação

Sozinho em minha cama, já noite alta,
partiu-me o pensamento à desfilada
montado numa potra, tresloucada,
veloz, que tudo corre e tudo salta.

E então nós dois, sozinhos, em ribalta
que estava intensamente iluminada,
dissemos p’ra a plateia que era errada
a ideia de que amarmo-nos é falta

E, logo acabámos, um trovão
de aplausos, “vivas”, “bis”, de incitamento,
mostrou que as gentes pulsam por quem
[ama.

Porém a potra, em face à multidão,
‘spantou-se e estatelou-me o pensamento
– e eu vi-me outra vez só na minha cama.


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Glória fugidia

Tracei, ainda jovem, como meta
chegar à glória sem pisar ninguém.
E a pulso, vindo quase da valeta,
subi ao patamar dos que algo têm.

E a Glória procurei-a na roleta,
nas artes, no trabalho ... Em vão, porém.
Até que te encontrei, alma inquieta,
E fiz-te acreditar que eras alguém.

Mais tarde possuí-te, e tu a mim,
e pude então saber que o Céu existe,
e achei, enfim, a glória que buscava!

Mas ai – e porque a glória é mesmo assim! ...
apenas te alcancei logo fugiste
e eu hoje estou mais só do que já estava!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Juventude reencontrada

Aquelas ilusões que eu dantes tinha
– e quando eu as pusera já de parte –
de novo as vi nascer ao encontrar-te
por logo me teres dito que eras minha.

Temi que não pudesses ser rainha
de mim, de ti, de nós ... quis avisar-te.
Calaste-me as palavras com tal arte
Que o amor em mim cresceu como erva em
[vinha.

Temeste, já rainha, ficares presa.
E agora quer’s livrar-te da incerteza
Dos planos que sonhámos, tão risonhos ...

Não sei se hei-de chorar, de tão dorido ...
Que jovem sou, porém, já não duvido,
Pois que ‘inda fui capaz de crer em sonhos!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Pedido de perdão

Em mágoas e angústias encerrada
surgiste em meu caminho. E, uma por uma,
de pronto as transformei em pó e espuma,
e tu te conheceste reencontrada.

Um passo ousaste dar direito à entrada
do teu Eu. Mas teu meio, como bruma
viscosa te envolveu. E a parte alguma
quiseste ir, p’lo tal meio manietada.

... Se nesse meio viscoso, a manietar-te
com festas, bens e falsa moral rude,
perdão é permitido acontecer,

perdoa este poeta que quis dar-te
o gozo de seres tu em plenitude,
que quis fazer-te ser em vez de ter!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Sonho esfumado

Eu vi-te como o Sol quando desponta
e lava a natureza em derredor;
teu riso era uma alacre e doce afronta
ao mundo que me envolve em escuro e dor.

Sonhei em ti carinhos de alma tonta,
e em mim ergui um altar para te pôr;
não quis amar-te mais que certa conta
... e amei-te até ao fim do meu amor.

Sonhei-te leve, etérea, golpe de asa,
ardente quando amasses, divinal
no dar’s-te e no tomar’s minha alma em
[brasa ...

... E mal chegou a hora de te ter,
o sonho se esfumou porque, afinal,
sonhei-te deusa – e eras só mulher!


Bernardes-Silva, Caderno nº 8

Uma quimera?!

A felicidade não será efémera
Mas sim formada por pequenos fragmentos
Pequenos como grão de areia eterna
Um conjunto de grandes sentimentos

Na formação de ínfimos momentos
Se encontra a verdadeira felicidade
São poucos, os que estando sempre atentos
Conseguem penetrar em tal veracidade

Ah! Que lástima não saber o ser
Que tal encontro estará na simplicidade
Do que é dar, dar e receber

Tudo se resume no sublime poder
Se descobrir com precisão tal verdade
Para o saber, e, por amor enriquecer.


AnyAna, Caderno nº 7

Poesia amor vida

Poesia é amor, amor é vida
Andando sempre juntos, sempre a par
Nem o ritmo veloz da grande lida
Nem o aumento atroz da grande dor
Os poderão separar
Sentimentos indispensáveis
De que o homem vai empobrecendo
Com o seu tempo escasseando
Só podendo em frente olhar
Com seus dias incansáveis
Aos poucos vai fenecendo
Se afastando sempre mais da poesia da vida
Que serão vindouros anos
Poderá a evolução destruir
O melhor bem da vida, o amor que é alegria
Nunca! Tal como o respirar
O homem terá que amar
E amando, terá dentre de si POESIA.


AnyAna, Caderno nº 7

Fugir ao tempo

Fugir ao tempo
Correndo como o vento
Na madrugada fria
Esperando um sol nascente
Vida incerta de agonia
Vida da verdade sempre presente
Em três gerações se chega e parte
Se ama e se sofre, se ri de alegria
E, quando chega a morte
Em ruína a vida no mundo se reparte
O amor que foi real, fremente,
O esquecimento no nada que existiu
Na porta que um dia abriu
E se fechou p´ra sempre
No sangue que foi quente
E ficou frio
Tudo ao pó voltou e se esvaiu
Fugir ao tempo
Fugir ao esquecimento
Ao sonho que chegou e que partiu.


AnyAna, Caderno nº 7

Com todo o amor...

Eu queira saber da vida, do que sou
Só sei que sei amar com toda a resistência do meu
[ser
Mas sei também sonhar
E sonhar é bom
Queria saber da vida, queria, a viver
Sentir o cheiro do firmamento
Ver a quente luz do sol brilhar
Com todos os sentidos em sentido
Eu queria eternamente, poder amar
Doar os sagrados sentimentos
Expandi-los, dominando a maldade
Distintamente sem segredos vãos
Eu queria dar, dar das minhas mãos
Com todo o amor
Eu queria humanizar a humanidade.


AnyAna, Caderno nº 7

Mais forte

Entre o ar, a terra, a água, o fogo e o vento
Os elementos da vida e da morte
Existe algo recôndito no sentimento
O amor, entre todos o mais forte
Mais forte do que a terra que dá o pão,
Alimenta o corpo, o sangue, a vida
O bater do coração
Forte como a água que o fogo apaga
O fogo que corrói, que destrói
O fogo que o vento ateia, bravio, não se condói
Mais forte do que o mar que a terra alaga
Do que o ar que tudo envolve
Sempre presente, vencendo na própria morte
Que se multiplica, se divide, qual célula da vida
Em tudo quanto existe, o amor tem sua parte
[infinda.
Na flor desabrochando à luz do sol,
Na mãe seu filho acalentando,
No banco do jardim o velhinho recordando.
Em tudo existe amor.
O amor que enaltece, dignifica, ameniza a dor
Continuativo jamais fim terá
Enquanto sobre o mundo existir vida
O amor existirá
Contra o ar, a terra, a água, o fogo e o vento
Quem sabe?
Talvez um dia contado como mais um elemento.


AnyAna, Caderno nº 7

Sabeis quem é

Aos Bombeiros Voluntários de Cacilhas
(escrito em 1970)


Homem entre homens, o mais glorioso
Herói que a vida dá em troca do nada
Com arroubos de coragem, dedicado, zeloso
Intrépido, tão sublime em sua longa jornada

Não existe no mundo palavras a traduzir
Nem o porquê de tanta abnegação
É como estigma que se deixa introduzir
Dentro do ser, profundo, no coração

Sabeis de alguém
Que desinteressadamente
Dê de si tudo o que tem
Com nobreza, sacrifício, voluntariamente
Não, não existe ninguém
Que sem comodismo mesquinho
Deixe tudo em seu caminho
P’ra dar a vida aquém e além

Enquanto os homens se matam cruelmente
Derramando a dor em luta constante
O soldado da paz, nobre, humanamente
Concede a vida ao seu semelhante

Ocorre solicito ao menor chamado
Sem olhar ao perigo, firme, abnegado
Que o mundo tribute admiração bem merecida
A quem dá tudo o que tem, Vida por Vida.


AnyAna, Caderno nº 7

Nostalgia

Sou ribeirinha
Nasci à beira do Tejo,
Desde sempre pequenina
Que o amo, o sinto, o vejo ...

Em barcos de amor naveguei,
Sempre, sempre à beira d’água
Por amor sempre clamei,
Mas em troca voltou mágoa

Quero sempre recordar
Os recreios, as chitas, os percais,
Coração no peito a pulsar
Tempo! Atrás não voltas mais

Do que a mente sente ficou só
A lembrança dos laços apertados
O todo da saudade virou pó
Mas é real o nó dos abraçados

«Se o tempo voltasse atrás
Com ele a Lapa, as Margueiras
Eu era ainda capaz
De saltar quentes fogueiras»

Ter a meu lado os amores
Que sempre me protegeram
Matizes de belas cores
Celestes cordas tangeram

Eu queria ser andorinha
Sempre, sempre a esvoaçar
Ser ainda pequenina
Ao meu Rio poder voltar


AnyAna, Caderno nº 7

Encanto das Margueiras

A meus pais
Recordação de minha infância


Ser sempre criança eu queria ser
Sempre sempre criança
Guardar avaramente os bons momentos
Os mais puros pensamentos
O primeiro sorriso de esperança
O perfume suave da primavera
Ser sempre criança eu queria ser
Sem problemas, sem compromissos
Ouvir o murmúrio das águas lavando seixos roliços
E na hora da maré cheia
Sentir o aroma da madrugada
Correr tonta de alegria ao banho de água salgada
Pés nus na areia
E no regresso, aquela fatia de pão com manteiga
[bem barrada
Oh! Ser sempre criança
Que encanto tinha
Correr atrás da formosa borboleta
Aprender a primeira letra
Voar no baloiço da pimentinha
Encarar a luz do Sol
Guardar a cor dos dias mais brilhantes
Colher flores em caminhos verdejantes
Viver na protecção de ternos braços
Que são laços de amor
Ser sempre criança eu queria ser
Ah! Tempo cruel, que passas a correr.
AnyAna, Caderno nº 7

Cacilhas e o seu Tejo

Cacilhas terra nossa pequenina
Rodeada p’las águas do seu rio
O Tejo, que em desvario
Vai subindo, vai descendo
E, vaidoso vai correndo
Ao longo de seu estuário
Conforme a maré o leva
É assim o seu fadário
Se misturando com o Mar
Cacilhas terra nossa, pequenina
Levemente a navegar ...
Teus telhados brotam vida
Lá no alto bem latente
Ao cimo de sua Igreja
Lá está a bela Araucária
Alegrando a sua gente,
Numa terra centenária
Não há igual certamente ...
Ah! Cacilhas terra nossa pequenina
Não há lugar neste Mundo,
Com tanto encantamento
Saudade, bom sentimento
Inspirando amor profundo
Tens em ti o privilégio
De seres banhada p’lo Tejo
De teres Lisboa por fundo.


AnyAna, Caderno nº 7

Nosso chafariz [de Cacilhas]

Desde 1874

Como um obelisco, um padrão
Tão belo no meio do largo
Eras nosso pequeno marco
Feito de pedra amarela
Nasceste servil ao povo
D’uma terra tão singela
Derrubado tristemente um dia foste
E contigo se foi a recordação
Dos meninos que em pézitos
Chapinhavam
Nas águas derramadas no teu chão
Sempre alegres sem ter mágoas
Brincando ao teu redor
Eras nosso penhor
Assinalando como um soldado
Neste pequeno rincão
À beira-mar plantado
Hoje, és apenas a lembrança
D’um recente passado ...


AnyAna, Caderno nº 7

Nosso farol [de Cacilhas]

Desde 1886 foste tu

Anteâmbulo de nossa infância
Mirante de nossos sonhos
Luz guardiã da esperança
Que embalou nossos anos mais risonhos
Ex-libris d’um lugar harmonioso
Lá no alto como grande e distinto senhor
Como um verde mastro elevado e orgulhoso
Tu mantiveste erecto, altivo em teu labor
De cintilante brilho te revestiste
Abrindo em tua luz verde esmeralda
Os caminhos do rio que te embalou
E, em ti viveu ...
E um dia sem aviso
Te arrancaram p’la raiz
E o lugar, que contigo foi feliz
Assim ficou castrado e entristeceu
E a tua formosa luz se apagou
Murchou p’ra sempre
Vivendo hoje somente
Em nossa saudosa mente.


AnyAna, Caderno nº 7

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Corpos belos que fomos

Corpos belos que fomos,
fotografias no papel já gasto.
E, hoje, a memória do que somos,
é um monstro que paira no passado!


António Toscano, Caderno nº 6

Nossos corpos escondidos e ocos

Nossos corpos escondidos e ocos,
Febris de promessas,
De solidões submersas,
Espreitam a sua ausência.

O teu corpo mancha,
Um sono de paredes nocturnas.
E miriades de ideias soturnas
Enroscam-se-me na penumbra.


António Toscano, Caderno nº 6

Roubaste os nossos corpos enlaçados

Roubaste os nossos corpos enlaçados,
precipitando-se no delírio.
Saciaste o teu desejo
e deixaste florescer um vazio ...
a cama ainda cheira a gestos
de ténues sombras, indiferentes, na
[loucura!

Terás sido tu?
O meu corpo ainda palpita ...


António Toscano, Caderno nº 6

Mãos!

Mãos!
Tuas mãos calejadas de memórias,
de tempestades navegando sonhos;
proa arremetendo sol dentro
e rasgando as vagas do meu corpo ...


António Toscano, Caderno nº 6

Que me restou

Que me restou,
senão escancarar a porta dos meus
[sonhos
e sorrir com os meus dedos
pelo teu corpo indefinido?

Que me faltou,
senão apagar o silêncio das palavras
e errar com os meus desejos
pelas tuas noites de inverno?

Um pouco mais de sonho,
um pouco mais ... de tudo!


António Toscano, Caderno nº 6

Pernoitei no teu interior

Pernoitei no teu interior.
Invadi a penumbra do teu medo.
Cicatrizes em bolor,
os teus dedos esquecidos no tempo.

Amargo foi o teu sono.
Cobri-me da poeira dos teus sonhos.
E permaneci triste, em abandono,
ouvindo a tua respiração dentro de mim.

Quando a manhã vier,
serei a tua cama em desalinho;
sentirei o que de ti houver,
Abater-me-ei sobre o teu rosto semi-
[-desperto!


António Toscano, Caderno nº 6

Lábios embebedados de vício

Lábios embebedados de vício.
O teu corpo treme de silêncio,
dos risos prometidos
numa noite em vão.

As promessas, foram palavras
[escondidas.
Sempre estivemos calados,
mas as nossas bocas ávidas
Beijaram um vácuo de desejos ...


António Toscano, Caderno nº 6

As tuas marés de noite

As tuas marés de noite
cercam de água o meu silêncio.
A tua sombra é o meu sonho,
a solidão incerta de um corpo.


António toscano, Caderno nº 6

Palavras solitárias

Palavras solitárias.
Palavras ... sem ninguém.
Estou contigo ... em palavras
e escrevo o teu corpo, gasto-o,
em incertezas de papel ...


António Toscano, Caderno nº 6

Memorizo o teu retrato

I

Memorizo o teu retrato;
os olhos de sonho no rosto,
enterrado entre o silêncio
dos nossos dedos repletos de
[fantasias ...

II

Palavras petrificadas,
sonho escuro
e, num derradeiro apelo às memórias,
pressinto o teu corpo absurdo!


António Toscano, Caderno nº 6

Respirar o amor

Respirar o amor,
perseguição sem dor.
Quero o deserto do teu corpo perdido
E permanecer oculto na sombra dos teus
[dias.

Recordar tempos sem lugar.
Manhãs felizes sem estar.
E da alegria que fingimos,Restam as palavras que escrevemos ...


António Toscano, Caderno nº 6

Abandono-me num sonho sem razão

Abandono-me num sonho sem razão.
Perco-me, vagabundo noctívago;
Os nossos corpos agitam-se em vão
Na solidão inerte do enlouquecer.

Afasto-me num interior inflexível.
Arrasto-me, louco melancólico;
O meu corpo projecta-se insensível
Num abismo nocturno de visões
[fantasmagóricas.


António Toscano, Caderno nº 6

A ordem dos sentidos

A ordem dos sentidos
agoniza em caos
e com ela os comuns.
Rejubilam as serpentes ...
Maldição entre as mulheres.
Triste criatura pariu um poeta.
O sol já derrama lágrimas
conversa e ri.
A lua debocha nos bares em
busca da terna e ardente paixão.
Os sentidos são o real
E o real o eterno sonho ...
Nasceu um poeta,
a morte perde todo o sentido
e o banal é regado a ouro.
A magia é o ar que se respira.
As musas existem entre operários
e funcionários públicos.
A monotonia e a rotina
padecem na melodia assombrosa
das harpas do vento.
Nasceu um poeta ...
A dor toma a forma do amor,
a maldição é abençoada.
Já não se caminha
simplesmente voa-se.
Tremem os mortais.
Calam-se as tormentas, a ira deixa
de ter chama e a guerra é um
jardim de infância.
Nasceu um poeta ...
Despejem os alambiques
criem néctares embriagantes
dão-se os amantes nas avenidas
e nas praças públicas.
A boémia é Rainha.
Nasceu um Poeta ...


António Boieiro, Caderno nº 5

Adormeci num sonho como chama incandescente

Adormeci num sonho como chama incandescente
suave estrela de alva.
Agora ... viajo inconstante
por vales de tamanho assombro

Grandioso astro iluminando o tempo,
o tempo ... sem destino corre

Alucinação de ser
mentira de existir.

A árvore ...
Mãe criadora o teu canto
cria e sublima a vida.

A verdade de sentir
quando sobre mim a chuva se debruça
beijando-me suavemente
e enlaçando-me no seu terno abraço

Doce ser...!

O sentir de uma verdade omitida ...
O tocar os astros com os dedos sujos
desta carne perversa

O eterno agora ...
A fome do desesperar por um eterno agora.
O falso eterno e a verdade pura
coexistindo sem se tocarem
transportando as asas decepadas
que nós decepámos
todos, todos, todos,
as agoras,
sem sentir,
mentindo com a mente doente,
mente demente que mata o sonho
e atrocida a vida.
E nos esconde, que a realidade
é uma só.
A da escravidão,
escravos de nós
numa prisão sem grades,
sem cheiro,
uma prisão atroz,
invisível,
dentro de nós.
Acomodados e satisfeitos
escravos da mente.


António Boieiro, Caderno nº 5

Que o tempo pare em torno de si

Que o tempo pare em torno de si,
o grito seja mudo e sem fim.
Que a volúpia morra
em leitos de sangue paixão.
Que a cor se torne luz
e o corpo seja floresta,
a alma o canto do mar.
Que o acordar seja o anoitecer
e a viagem em meu ser.


António Boieiro, Caderno nº 5

Silêncio!

Silêncio!
Que hoje se canta um fado,
a história de um amor,
da eterna saudade,
de noites de luzes perdidas num sonho,
sonhado sem tempo,
ao sabor da morte,
ao sabor do fado.
A história de corpos vagueando
no fio de uma navalha,
a história de uma falha,
de olhos sem brilho,
de almas despertas,
de flores encantadas,
de um conto de fadas.
A história de um mar que aclama:
Silêncio!
Que hoje se canta a alma ...


António Boieiro, Caderno nº 5

De amor...

De amor ...
Já não vos falo,
pois em verdade vos digo
Que dele guardo tudo dentro de uma caixa coberta de safiras,
inebriada com o perfume de rosas.
Ah! Formosas rosas,
pétalas de oiro que delas colhi
jazem agora nesta caixa de marfim.
Espinhos colhi também, pois então.
E em dilacerantes uivos
cantei ao vento chagas
que me castigavam o peito.
E, tal rouxinol, confessei a minha dor,
o meu amor.
O meu amor guardo numa caixa,
cheia de saudades e paixão,
de momentos sem tempo,
de espirais de cor, noites de branco veludo,
cálices de doce cicuta,
teias de emoção,
lagos de cristalinas lágrimas,
musas resplandecentes,
luas feiticeiras,
contos de fadas ...
O meu amor ...
O meu amor guardo numa caixa.


António Boieiro, Caderno nº 5

Olhos vendados

Sonho o tempo em memórias
de faces imperceptíveis,
espectros de cores douradas
cavalgando e corcéis.

Liberto-me da carne
em espasmos incandescentes,
vislumbro a luz enorme
de emanações celestes.

Sangro a vida
em espaços sagrados
com a alma despida
e os olhos vendados

Insano grito já sem a voz
a palavra ecoante
por entre o mundo atroz
mas já ninguém a sente.

Do cálice eu bebo
O líquido de amargo sabor
Abandonando o soberbo
Abraço assim a dor.


António Boieiro, Caderno nº 5

O que nasce morre

O que nasce morre
e o que morre nasce
e a espiral da vida é um circo
a alma é o palhaço
a ira a fera medonha
e a mente o domador
e a criança ri
e o homem chora
em si menor
a magia é um trapézio
sem rede
e as aberrações
os actos falhados
as frustrações do
repetir constante da maré
os beijos cantados
em dó de amor
os tragos de
lágrimas sorvidos
na corda bamba da dor
e a roda gira
em sol maior


António Boieiro, Caderno nº 5

A porta...

A porta...
A porta encontrava-se
na mais imensa das florestas.
Sinto ainda as veias a gritar
perante a dor dos cortes
provocados por exércitos de espinhos.
Mas eu vi ...eu vi, a Porta,
na mais longínqua das florestas
Ali, prostrada ...
Fechada, calada, sublime, enorme ... a Porta.
Toda a minha vida a procurei;
em antros de dor,
em céus de vermelho manchados,
em rituais de tempos sagrados,
em mundos esquecidos,
em ilusões de realidades incertas,
em êxtases de carne,
em espasmos de volúpia,
em cálices de loucura,
nos meandros do ser,
no labirinto da mente, caminhei ...
percorri os caminhos assombrosos do sonho ...
Eu fui pesadelo ... Procurei ... A Porta?
A velhice do meu corpo se apossou.
Já sem forças gritei: A Porta?
Finalmente, a Porta.
E eu sem chave para a abrir ...


António Boieiro, Caderno nº 5

Desaparecer

Desaparecer!
Tornar-me uma partícula de pó
que povoa o velho rodapé
de um quarto escuro.
Deixar que o sopro tome as rédeas do meu ser
e simplesmente flutuar sem qualquer destino.
Ouvir as palavras sumptuosas do poeta
que, na solidão, vocifera
defronte à sua translúcida imagem,
profetizada num espelho
que se quebra
em mil pedaços
de uma amplitude tamanha
que se volvem em mais pó
que povoa o velho rodapé
do quarto escuro.


António Boieiro, Caderno nº 5

Imaginária onda

Imaginária Onda

Naufraguei em todos os
abismos da mente

Fui flor de lótus
nos Jardins de Bizâncio

Lágrima salgadas
de Adamastor

O quinto vórtice
da pirâmide

Arco gótico de
catedral

Imaginária Onda

Cálice de doce
cicuta

Redenção de espírito antigo

Montanha voadora
cipreste contador da história
do mundo

Fábula encantada
deusa da luz
mulher de múltiplos seios
harpa de ciclope

Imaginária Onda

Tempestades de amor
feiticeiro da maré
sonho dos ventos
sacerdotisa da lua
guardião do espaço
volúvel forma
de néctar
veneno de Nero
serpente de Medusa
esperança de Pandora
tapete mágico
lâmpada de Aladino
gárgula de Nôtre-Dame


António Boieiro, Caderno nº 5

Sentir o toque do mar imenso

Sentir o toque do mar imenso
inundar o espírito,
purificar o ser,
como se de água fosse feita a alma.
Descer às profundezas
de um abismo de cor,
deixar de pensar,
exorcizar a dor,
deslizar lentamente
sobre um céu de mil prantos
e ser um só com o mar.


António Boieiro, Caderno nº 5

Mil faces

Mil léguas de distância percorreste,
em mil espelhos enfrentaste
a imagem de que fugias,
mas em tua alma vias
mil cores que te abraçavam
que em mil danças te lançavam.
Contra mil lobos lutavas,
Mil vidas tu tiravas.

Sobre mil mares navegaste
em mil mundos procuraste
as mil faces que vestiste
sobre a face que não viste.

Em mil sonhos que não sonhaste
foi-se a vida que perdeste!


António Boieiro, Caderno nº 5

Penso

Penso que é possível
apanhar os pedaços
de tudo o que se partiu.
Reuni-los de novo,
porque os pedaços são de mim.
Tentar ser forte
no meio de tanta fraqueza.
Afinal, não são só de mim
são também de ti.
Vou guardá-los escondidos
para que ninguém os veja.
Mesmo em pedaços
ainda resta o tempo.


António Alberto, Caderno nº 4

Tempo

De quanto tempo?
De quanto tempo precisaremos
para perceber
que só por indecorosa exposição
nos revelaremos?
Que só por fractura total
a vida se revela
viva e aberta
como um parto?
Temos o ser e o grito.
De que mais precisamos?


António Alberto, Caderno nº 4

Actor

Reverso de mim
por inversão de discurso,
represento a minha farsa
espelho do meu fracasso.
Tantas vezes ausente de mim
quando me procuro.
Representar-me a mim próprio ...
Sacrifício supremo.
Espectador atento,
crítico terrível,
observo-me e recuso-me.
Ponto final.


António Alberto, Caderno nº 4

Palavras

Que estranhos significados
As palavras consentem.
Que de estranho Amor
elas são constituídas.
Que de estranhos encontros
nós somos construídos.
Qual a crueldade
que nos fez assim
erectos e infelizes?
Qual Deus nos fez assim
com um destino
tão simples?


António Alberto, Caderno nº 4

Amor

O que é o Amor?
É só Amar?
Ou existe entre o Amor
e o amar, algo mais
tão difícil de conseguir
como de concretizar?
Que se passa de tão complicado
entre o que ama e o ser amado?
Será o Amor o fim último
ou a verdadeira razão
da Vida.


António Alberto, Caderno nº 4

Sorriso

Tens um sorriso lindo
quando fazes amor.
Do teu e do meu prazer
saberei retirar
as coisas mais importantes
da vida.
Depois, cansado, vou olhar-te
demoradamente,
e concluir, com certeza absoluta,
que, afinal, existes.


António Alberto, Caderno nº 4

Prefácio

Prefácio de mim, desenrolo-me.
A vida corre.
Corre tão depressa
que quase
não consigo alcançá-la.
Espero-te!
Nunca mais me deixes
assim.
Serei ridículo
ao escrever?
Tenho à minha frente os grandes ...
Serei eu tão pequeno?


António Alberto, Caderno nº 4

Ela

Ela dorme.
Mas dormirá?
Não estarei eu a roubar-lhe
O sono que ela merece?
Não serei eu um ladrão de sono
E de tranquilidade?
Um ladrão de afectos e ternura?
Porque sou tão incapaz
de ter serenidade?


António Alberto, Caderno nº 4

Slêncio II

É melhor falarem.
Assim, com todo
o vosso ruído
conseguirei ouvir-me.
Não só ouvir-me,
mas ouvir-te
com toda a tua bondade,
com todo o teu corpo
aberto em boca.
Com todo o meu ser
ávido de ti.


António Alberto, Caderno nº 4

Silêncio I

Calem-se!
Deixem-me beber
descansado
os meus pensamentos
e o meu Amor.
Calem-se!
Permitam
que por momentos
tudo aconteça,
o bem e o mal
e todas as terríveis
contradições.
Calem-se, por favor.


António Alberto, Caderno nº 4

Que teimoso és tu
que ficas
quando todos já se foram?

Que aguentas com todas as cargas
tremendo de medo
e de lágrimas nos olhos?

Que raio de massa corpórea
se ajuntou assim
tão carregada de tristeza?


António Alberto, Caderno nº 4

Janela

Rondo em volta
da tua janela.
Para nada,
porque tudo já foi dito,
por esperança iludida.
Por detrás da tua janela
sonhei por momentos
que era possível.
Agora, em frente dela
a memória mata-me
e trai-me.
Nunca esquecerei!


António Albert, Caderno nº 4

Solidão da morte

Os olhos fixos
Nessa face sangrenta
Pálida e inerte
As mãos longas
Perdidas no vago branco
Dos lençóis sujos
A boca escancarada
À espera de algum som que irrompa
A tua face magra
Os teus olhos vazios
Espantados com a vida e com a morte
As tuas mãos despojadas
E o teu coração seco
Alienado de sofrimento
No meio do qual procuras não sobreviver


Sara Costa, Caderno nº 3

Em Setembro

eu quero uma calamidade natural
que arraste o meu corpo
imenso e inerte
neste turbilhão espiritual
para que ele seja resgatado
já sem vida
e a alma já perdida
no universo
de estrelas cadentes
que frequentam
os céus de Setembro.


Sara Costa, Caderno nº 3

No canto da tua alma

No canto da tua alma
Vejo-te adormecido
como um passarito em intervalo de voo.
Pássaro de penas azuis, suaves, sem asas feridas.
E sorris no sono.
Toco-te com gestos de algodão
para que me sintas,
mesmo sem acordares ...
Olho-te na penumbra do quarto
e ouço-te ronronar quente e baixinho.
Beijo-te de leve
e sei que sabes que sou eu.
Sorris.
Nem sei se para mim,
se para o teu sono-sonho de conquistas,
em que és herói.
Sorrio contigo ... e por ti.
É a altura em que és mais meu, o meu menino.
O meu menino,
no sonho da noite que ainda não tem fantasmas.
Fecho a porta devagarinho ...
Saio pé ante pé ...
e tu, ficas comigo e eu contigo,
no cantinho da tua alma ...
E ficas comigo ... livre, mas meu para sempre.


Nia, Caderno nº 3

Onde estás Fernão?

Encontrei-a ali, ao virar da esquina.Com outras. Como
[outras.
Tinha as penas sujas de restos de comida e
[mergulhava no cheiro pestilento e nauseabundo do lixo da rua da Liberdade.
Parei e fiquei a observá-la.
Ela olhou-me também, com um olhar piscante e raiado
[de sangue.
Teria eu visto tristeza naquele olhar? ... Ou vergonha
[de vasculhar no lixo?
Desviei o olhar e , por algum motivo, me senti culpada.
O mar, continuava lá ao fundo ...
A Gaivota sacudiu os restos de comida das patas e das
[asas e, esvoaçando, tomou o rumo do ainda pedaço de azul-céu.
Segui-a com o olhar.
O céu continuava impávido e azul.
Não havia tempestade no mar e, no entanto, ela tinha
[fugido para terra.
Era uma gaivota indigente.
Agrupada em indigências e abandonos e pestilências
[de todos nós.
O mar já não é o que era.
Nem o céu.
Nem as gaivotas.
Andam nervosas, stressadas, temeratas.
Estragaram-lhes o mar, estragaram-lhes a casa.

E é aí que nasce o perigo da nossa relação.
Estremeci ao lembrar o olhar raiado de sangue daquela
[Gaivota.
A indigência provocadora de assassínio à solta?!
O filme "Pássaros" do Mestre?
Um arrepio em mim.
Estragaram-lhe a casa.
Esqueceram-se delas.
As Gaivotas ...
Os poetas românticos renascerão e não tardarão a[inventar um Fado de Gaivotas.
Gaivotas que sofrem e descem até aos lixos das
[cidades , para sobreviverem.
E sobrevivem as gaivotas ... já não vivem.
Adamastores do Mar , estragam e embargam os Mares
[da Boa Esperança.
Sopram ventos mais a contra do que a favor.
Brotará do seio das Águas, um líder.
Gaivota Garibaldi?
Fernão Capelo Gaivota ... onde estás?!
No seio do Mar, no seio da Fome, mais acima ... ainda
[haverá uma Gaivota Sonhadora que prescinda do jantar?
Fernão Capelo Gaivota, adormecido .... voltarás?


Nia, Caderno nº 3

É este o silêncio

É este o silêncio
Das palavras por dizer ...
Límpidas!
Correndo velozes
pelo rio do pensamento,
de águas turvas,
que vai desaguar
neste imenso mar
que tenho dentro de mim!
Prenhe de contidas emoções,
sentimentos sofridos,
presos numa alma que vagueia sem rumo
à procura dos sonhos de hoje
que do presente fugiram
ao passado regressaram
no futuro se refugiaram.
Frágil ilusão de felicidade,
ausente desse teu olhar
que insiste em
não me compreender.
Mas, vem ...
Vem até meus braços!
Receber-te-ei ...
uma e outra vez,
de olhos vendados,
com este corpo já cansado
de espírito rejuvenescido,
fremente de paixão.


Minda, Caderno nº 3

Ontem

Ontem,
parei no tempo!
Para me encontrar...

Fechei os olhos,
e comecei a sonhar!

Hoje,
Encontrei-te a meu lado!

Paixão escrita no vento
Amizade sem igual.

E na esquina do teu olhar
(de mil ilusões construído)
acabei por me perder.

Quero muito contigo estar
mas preciso livre ser
coração sem amarras, pode amar
na prisão...
acaba por morrer!


Minda, Caderno nº 3

E é esta paixão ardente

E é esta paixão ardente
Que me faz ficar doente
O impossível pretender
De desejo quase morrer.

E é esta enorme vontade
De em teus braços estar
Que a minha pele acaricies
De prazer me faças gritar.

E é esta forte atracção
De teus lábios beijar
Que me faz perder a razão
Por tanto te desejar.

E é este sonho incrível
De teu corpo explorar
Sensação tão apetecível
Que mesmo na tua ausência me faz suspirar.

E é esta loucura total
Que me dá força para viver
Embora receie seja fatal
Se nalgum dia te perder.

E é esta doce ilusão
que transforma a crua realidade
me aquece a alma, o coração
e fortalece esta nossa AMIZADE!


Minda (1992), Caderno nº 3

Em Cacilhas à espera de ser criança

Os meninos de Bronze
Sobem Burro acima
E lá no alto
Riem-se ao ver a bola saltar
Jogada pelas nossas crianças reais
Traquinas e bem vivas
Normais!
Correm e saltam
Ziguezagueando entre floreiras de pedra
E bancos de madeira
Fintam o acidente em jogadas de sorte
Driblam na passada
As sombras velhas da intolerância
Esperam que as pedras da calçada e o cimento
Como no milagre de Abril
Pelo escorrega feito Burro anunciado
Cumpram o parque e o espaço verde
Há quarenta anos prometidos
Talvez aí os meninos de Bronze
Na escada parados
Ganhem imaginação e movimento
E comecem a andar
E a brincar
Tornando o monumento em Verdade.

H.M., Caderno nº 3

Barcos que passam ao longo do cais

Barcos que passam ao longo do cais
Levando consigo tristezas a mais
Barcos que vão buscar o seu pão
Barcos que vão encontrar solidão.

Passam-se noites, passam-se dias
E tu não mais voltas, como merecias.
Deixaste na terra as tuas raízes
Deixaste na terra vidas infelizes.

As tuas crianças estão semi-nuas
De vermelho e negro se cobrem as ruas
Crianças que ficam sem o pai mais ver
É a vida que passa, tristeza é morrer.

Um homem do povo que morreu no mar
Levanta-te amigo, começa a lutar.
Contra esses senhores que te fazem escravo
Levanta-te amigo e mostra-lhes um cravo.

E a vida seguiu e o homem morreu
E a mãe a chorar não mais esqueceu.

Não te deixes mais roubar, ó pescador
Pela vida vais lutar
Luta pela Liberdade pescador
Pelo Poder Popular.


Ana Lúcia Massas, Caderno nº 3
(escrito no início da década de 80)

domingo, 19 de outubro de 2008

Solidão

Eu queria ter um amigo
Um amigo companheiro
Que em horas de incerteza
Fosse o meu Sol o meu esteio.

E as horas de alegrias
Aquelas de Bem Querer
A ele eu as queria dar
Com elas o anseio ter.

Vem amigo. Vem depressa
Parar com este desgosto
Que ensombra os meus olhos

Meus olhos que foram belos
Hoje só querem chorar
Vem! Para poderem amar!


Alice Luiz, Caderno nº 2

Desejo

Queria lembrar-te como eras. Perdi!
Saber o que fomos para nós. Esqueci!
Sentir-te sereno em mim. Fugi!
Viver tempos quentes contigo. Arrefeci!
E a luz que os teus olhos eram;
E de que tanto tempo vivi?!
Quisera vê-los de novo
Sentir o seu brilho e fulgor.
Só para te ver mais uma vez
Meu Amor e Meu Fim.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Transformação

Livre a palavra sentida
Inquieta mas doce a fala
Como quem arruma a mala
Sem grande organização
Só desejando fechá-la
E noutro lugar a abrir.
Dela fazendo sair
Sem grande organização
O quente vermelho do amor
Mais aquela doçura azulada
De adormecer nos teus braços
E neles acordar anichada.
Quando despertam os amarelos da madrugada
Tendo ainda a mala desarrumada.
Mas ter nela todos os tons do arco íris
Que é esta livre e única vontade
De ser e dar felicidade
Sem jeito nem originalidade.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Homem, és poço sem fundo

Homem, és poço sem fundo
De afagos de prazer
Como podes então ser
Algo de tão inseguro
E lances em meu futuro
O vazio da incerteza
Que rouba toda a beleza
Aos dias do meu viver
Ao sonho de acontecer
A loucura de te dar
O corpo, a alma e o Ser.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Espaço de sonho

Sobre o teu corpo dormido
Como terra não lavrada
As minhas mãos se mergulham
Como em água perfumada

Perfumada quente e doce
Na ternura que ficou
Da noite não acabada
Mas já somente sonhada

Sonhada mas tão real
De carícias semeadas
Em nossos corpos de sal

Sal que nossas bocas tempera
Quando tão doces afagos
São feitos em espaços iluminados.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Este coração

Meu coração vadio
Marinheiro de alto mar
Nas noites de lua cheia
Ai que doce navegar.
Navegar nos braços teus
Quando é noite e há luar
É mais doce e delicado
Que teus lábios beijar.
Mas beijar-te é o que faço
Quando chegar o instante
De mergulhar no teu mar.
Mas para mim o meu mar
São agora esses teus olhos
Quando mergulho neles
Logo deixam de ser teus.
Será que são só meus?!


Alice Luiz, Caderno nº 2

Vãos de alma

Eu queria ir p’lo vento
Para além do que há além
Fazer a minha morada
Nessa terra de ninguém
Essa terra de ninguém
Onde há tudo o que desejo
O doce calor dos beijos
A ternura dos sorrisos
Dos sorrisos de alegria
De vida, amor e sol
Que vão do nascer do dia
Ao quente dum pôr do sol!


Alice Luiz, Caderno nº 2

Lembranças

A chuva bate à janela
E chama chama por mim
Ela sabe que nesta noite
Por algumas horas morri
De infelicidade que é dor
Esta dor forte e imensa
A sede de te não ter!?
Quando eras meu tinha tudo
A mesa posta, pão e flores
Teus olhos só para os meus
Eram pedaços de céu
Quando te dava a mão
Ficavam minha alma e corpo
Confortados de tudo aquilo
Que vinha do teu coração
Foi o tempo de nos termos
Do Amor até do ciúme
Que bastas vezes pôs em lume
Meu corpo de encontro ao teu
Era a hora da verdade
A verdade de existir
E termos de novo em nós
O fogo de nos querermos
Até a vida querer!


Alice Luiz, Caderno nº 2

Lágrimas

Os vidros desta janela
Choram os sonhos perdidos
Dos que andam sós pelo mundo
Este mundo de sofridos.

Só com a alma deserta
Sem sonhos sem sentimentos
Desejos leves de azul
Que nos tornassem mais belos.

Belos de alma e olhar
Como as luzes desta noite
Noite fria sem luar.

Luar de sombras e medos
Chorando lágrimas doces
Nas vidraças chora o luar!


Alice Luiz, Caderno nº 2

Tua mão

Mal os meus olhos se fecham
Tua mão vem de mansinho
Passear-se pelo meu corpo
Como brisa de Verão
Vem falar de mansinho
Do amor, de carinho e doçura
Das volúpias da loucura
Sonhos que se não sonharam
Beijos que se não deram
Lutas que se não travaram
De saudade e solidão
Sofrimento nunca findo
Que ao sentir tua mão
Se transformaram em tempo
Tempo para outra paixão.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Desespero

A noite era tão escura
Tão sombria. Tão calada
De repente fez-se dia
Era o luar da alvorada
E foste noite de Sol
Não foste noite calada
Falaram os silêncios
Luziram todas as estrelas
Reverdeceram as árvores
Abriram-se todas as flores.
E quando te dei a mão
Cessaram todas as dores.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Sonho

Meu corpo vagando
Na casa perdido
Vai lembrando sonhos
De toda uma vida.
A vida perdida e espaços vazios
A não ser de beijos, com quem reparti-los
Foram muitas as bocas
Que beijei na vida:
Só nunca encontrei
Beijos por medida.


Alice Luiz, Caderno nº 2

Sonho

Meu corpo vagando
Na casa perdido
Vai lembrando sonhos
De toda uma vida.
A vida perdida e espaços vazios
A não ser de beijos, com quem reparti-los
Foram muitas as bocas
Que beijei na vida:
Só nunca encontrei
Beijos por medida.





Alice Luiz, Caderno nº 2

Turista breve

no autocarro desço a verde serra
de arrábida chamada: vim cá hoje
para sentir o mar a luz o longe
estar mais perto da planície dourada
passando então a tróia celebrada
sorver o cheiro o sal e o amor da terra.

vim só fugir um pouco de uma guerra
como quem das lisboas sempre foge
e descansar: viver a paz de um monge.
mas vim numa carreira atrasada:
cheguei tarde não vi já quase nada
regresso agora a casa (pela serra).


Affonso Gallo, Caderno nº 1

O tempo já não é o que era

primavera primavera
quem te deu e quem te dera
cai o lírio cai a lírica
chovem flores chovem cores
corre sangue corre hormona
vive vida vive vida
é tempo de renascer
primavera primavera
sempre igual sempre quimera
verdadeira verdadeira
quem te deu e quem te dera
passarinhos passarinhos
agora fazem os ninhos
sol bravio sol bravio
promete antes do estio
melanoma melanoma
primavera primavera
era linda já não era
(fico a ver o céu arder)


Affonso Gallo, Caderno nº 1

O tempo já não é o que era

primavera primavera
quem te deu e quem te dera
cai o lírio cai a lírica
chovem flores chovem cores
corre sangue corre hormona
vive vida vive vida
é tempo de renascer
primavera primavera
sempre igual sempre quimera
verdadeira verdadeira
quem te deu e quem te dera
passarinhos passarinhos
agora fazem os ninhos
sol bravio sol bravio
promete antes do estio
melanoma melanoma
primavera primavera
era linda já não era
(fico a ver o céu arder)





Affonso Gallo, Caderno nº 1

Poema para não dizer nada

um outro assunto outra preferência
destilo agora em mau alambique
o verso é fraco falsa a ciência
não há mesmo aplicação que explique

com que alquimia troco de aparência.
mas isto não é tudo: pois que fique
encriptada na mais fina demência
a substância volátil desta psique.

mas isto não é nada: é carência
de ideias e argumentos. é doença
manifestando sempre um certo tique
que não veio da batalha de ourique.


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Affonso Gallo esperando sentado

à espera de quem
nunca amei
aguardo também
que o tempo me traga
ainda que vaga
uma nova lei:

a lei da verdade
do merecimento
ainda que tarde
que seja afinal
o final real
do meu sofrimento

é isso que aguardo
aqui na esplanada:
aguardo sentado
a ver uns de pé
a beber café
outros limonada

que vida lixada


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Affonso Gallo esperando sentado

à espera de quem
nunca amei
aguardo também
que o tempo me traga
ainda que vaga
uma nova lei:

a lei da verdade
do merecimento
ainda que tarde
que seja afinal
o final real
do meu sofrimento

é isso que aguardo
aqui na esplanada:
aguardo sentado
a ver uns de pé
a beber café
outros limonada

que vida lixada





Affonso Gallo, Caderno nº 1

O poeta e o seu coração

num templo de sereno e doce agrado
meu coração quis pôr a repousar
pedindo-lhe que deixasse de amar
as tempestades o negrume o fado.

meu coração pensou por um bocado
de tempo que parecia não passar
e quando enfim deixou de considerar
mandou-me pelo corpo este recado:

mandas-me não amar (disse); não posso:
é minha natureza o meu devir.
tu podes bem guardar a dor no bolso

podes sempre a azeitona engolir
e no fim deitar fora o caroço.
eu preciso sofrer: preciso rir.





Affonso Gallo, Caderno nº 1

O poeta e o seu coração

num templo de sereno e doce agrado
meu coração quis pôr a repousar
pedindo-lhe que deixasse de amar
as tempestades o negrume o fado.

meu coração pensou por um bocado
de tempo que parecia não passar
e quando enfim deixou de considerar
mandou-me pelo corpo este recado:

mandas-me não amar (disse); não posso:
é minha natureza o meu devir.
tu podes bem guardar a dor no bolso

podes sempre a azeitona engolir
e no fim deitar fora o caroço.
eu preciso sofrer: preciso rir.


Affonso Gallo, Caderno nº 1

O último cliente deste bar

são horas de fechar: vamos embora
abrir mais um capítulo da noite
lançar a outro vento a nossa sorte
esquecer essa verdade que demora

a olvidar. já sei que está na hora
de pôr na rua alguém que mais se afoite
mas minha tibieza faz-se forte
para mostrar firmeza enquanto chora

só por dentro da sua própria máscara:
que ao transpor a porta deste bar
ainda grito e bebo às gargalhadas

como se assim escondesse esta lástima
de saber que sair é mais que errar
que estas palavras são todas falhadas.


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Soneto para uma decisão que tarda

da vida já falámos já dissemos
ao espelho o que há a confessar.
está pois falado. porquê mais esperar
para exercer o amor que ambos queremos?

exercitamos sempre meios termos
meias palavras: meios de falhar
de soerguer a dor de acreditar
que quanto desejamos não teremos.

que mórbido tão vício de sofrer:
como se fossem dores em nós adornos
de tipo não amar antes morrer.

ainda falta olhos nos olhos pormos
dizermo-nos que isto não é viver
e sermos afinal só o que formos.


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Soneto em que o autor também escarnece de si próprio

há muito tempo já que te desejo
pois tu há muito tempo me alucinas
com teus olhos teus gestos tuas finas
colorações de pele. o que em ti vejo

é como um espelho de água: é ensejo
de completar com minhas endorfinas
a afinação do corpo. pois afinas
em mim o que há de mais audaz: o beijo

que ainda não beijei. mas tu não sabes
(ou se sabes não o queres admitir)
o que arde nesta química voraz.

e é esta frustração em que me trazes
(verdade é que eu também não sei pedir)
o efeito que me faz o que não dás.


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Anacrónica dúvida num tempo em que o "amor" se serve já pronto a consumir

parece que há um amor que se sente
que se transforma no amor que se faz
mas nem sempre: e aí já não há paz
quando um de dois corações não consente

que o amor possa fluir tão livremente
do amor desejo para o amor audaz.
então até o desejo rarefaz
o corpo: pois não vive eternamente.

só eu parece que me sobrevivo
alimentando um desejo sem fim:
um amor que não decide nem desiste.

amar-te sem fazer amor contigo:
ironia cruel. mas só para mim
ou também alimentas um ser triste?


Affonso Gallo, Caderno nº 1

Soneto autobiográfico

o dia em que eu nasci foi sexta-feira
às sete da manhã nesses brasis
onde o calor e o mar tornam febris
os lusos que lá vão. nasci à beira

do pino do verão, da verdadeira
causa do fogo e ali fui petiz
durante um certo tempo: era feliz
e davam-me por certo sol na eira

e chuva no nabal: davam-me o mundo
perfeito ar de príncipe encantado
futuro presidente desse estado.

tudo isso era engano e bem profundo:
da vida não vi mais que um estar calado
ando perdido na terra do fado.


Affonso Galo, Caderno nº 1

Declaração de princípios em rimas apenas toantes

e eis-me então usando e abusando
de glosas com que sempre ando gozando
alguma coisa (nem que seja eu próprio
que em coisa me transformo quando escrevo:
brinquedo de algum mais esquizofrénico
grupo exibicionista de neurónios).

de isso não me contento nem espanto
embora tenha sempre assim um tanto
(como direi?) urinol oratório
ou um monte de esterco em que me enterro
tentando no entanto ser higiénico
enquanto me aconchego entre fólios.


Affonso Galo, Caderno nº 1

(Depois de ler Antero de Quental)

que noite me fadou para ser livre
no mar imaginário da saudade?
que pérola de pranto me plantou
o pé no visco de uma soledade?

quem foi? quem provocou a diatribe
do sol salgado pai desta vaidade?
foi porventura um deus que germinou
ainda o tempo não era verdade?

Affonso Galo, Caderno nº 1

sábado, 11 de outubro de 2008

INDEX POESIS - poemas e autores

Desde o nascimento (em finais de 2003) até à suspensão (em 2005), foram publicados 47 volumes, individuais ou colectivos, e que a seguir identificamos, onde colaboraram 38 poetas (entre os quais 11 mulheres) que nos ofereceram cerca de 520 trabalhos originais.

Em termos etários, a idade média era de 51 anos, mas havia jovens de vinte e poucos até gente com mais de oitenta, uma riqueza inter-geracional digna de nota.

Cadernos Uma Dúzia de Páginas de Poesia publicados:

n.º 1 Affonso Gallo (pseudónimo de António Vitorino)

n.º 2 Alice Luiz

n.º 3 Ana Lúcia Massas, H. M., Minda, Nia e Sara Costa

n.º 4 António Alberto

n.º 5 António Boieiro

n.º 6 António Toscano

n.º 7 AnyAna

n.º 8 Bernardes-Silva

n.º 9 Conceição Cotta

n.º 10 João Mota, Lino Átila e Mendonça Ferreira

n.º 11 Jorge Fialho

n.º 12 Paulo “Aelin” Moreira

n.º 13 João Vasco Henriques

n.º 14 António Vitorino

n.º 15 Isabel Moreira

n.º 16 Mendonça Ferreira

n.º 17 Humberto Santos, Isabel Moreira e M. P.

n.º 18 Nogueira Pardal

n.º 19 António Alberto (vol. II)

n.º 20 Isabel Moreira (vol. II)

n.º 21 Isidoro Augusto

n.º 22 António Alberto (vol. III)

n.º 23 Isabel Moreira e Carlos Gomes

n.º 24 Nia

n.º 25 António José Coutinho

n.º 26 Isabel Moreira (vol. III)

n.º 27 António Toscano (vol. II)

n.º 28 António José Coutinho (vol. II)

n.º 29 Fernando Morais

n.º 30 Luís Milheiro

n.º 31 Isabel Moreira (vol. IV)

n.º 32 Humberto Santos

n.º 33 Nogueira Pardal (vol. II)

n.º 34 Rui Castro

n.º 35 António Alberto (vol. IV)

n.º 36 Poemas Dispersos, de Alberto Afonso

n.º 37 Conversando com Rimbaud, de Fernando Morais

n.º 38 Manuel Marques

n.º 39 Susana Cunha

n.º 40 António Vitorino (vol. II)

n.º 41 Rogério Simões

n.º 42 Anabela Dias

n.º 43 António Alberto (vol. V)

n.º 44 Manuel Marques (vol. II)

n.º 45 Almad’Abril, diversos autores

n.º 46 Poemas Radiografados, de Danylo Americano

n.º 47 Dia Mundial da Poesia – 2005. (Colectânea)

Todavia, mesmo com a colecção temporariamente suspensa, foram-se juntando ao projecto mais uma dezena de autores, sem contar com os novos trabalhos daqueles que já tinham colaborado connosco. E após se ter pensado efectuar o 1.º Encontro de Poetas Almadenses, depressa chegámos aos 19 nomes, com uma maior incidência de jovens (o que fez baixar a média etária para os 40 anos) e de mulheres (que passaram dos 29% anteriores para os actuais 39%).
Por isso, em vez dos 38 autores que publicaram os cadernos Uma Dúzia de Páginas de Poesia, temos, hoje, 57 poetas a participar nesta colectânea, havendo a destacar a participação especial de Alexandre Sartorelli, Anna D’Castro, Daniele Vasques, Maria Lúcia Nazareth e Ricardo Ruiz, que representam o pilar d’além mar da “ponte poética” que pretendemos construir sobre o Oceano Atlântico a unir Portugal e Brasil.
Em 2007, retomou-se a edição dos Cadernos Uma Dúzia de Páginas de Poesia e hoje, Outubro de 2008, a nossa colecção já conta com mais de 70 volumes publicados e tem mais de uma dezena em lista de espera.

INDEX POESIS - o projecto


Tenho da Cultura uma ideia talvez demasiado utópica: espaço social onde o grau de formalismo se esbate nas práticas quotidianas solidárias; campo fértil de memórias e afectos onde todas as expressões artísticas têm a mesma dignidade. Por isso, para mim, a oferta e a fruição das actividades culturais são, sobretudo, formas de participação cívica.

Nesta óptica, encaro a Cultura como um instrumento legítimo de Poder que, quando efectivamente partilhado entre os diferentes agentes (instituições, autores e público), de forma integrada, permite transformar a realidade através da compreensão dos valores da sociedade (passados, presentes e futuros).

Recuso-me a considerar a Cultura como um mero produto comercial, onde o lucro é mais importante do que o conteúdo, e não aceito que se avalie a produção de quaisquer actividades culturais em função da sua capacidade de gerar dinheiro, apesar de reconhecer que é necessário um apoio financeiro para produzir determinado tipo de materiais de suporte.

Para mim, todavia, o fundamental é, e será sempre, o papel desinteressado de quantos estão nesta área “de alma e coração”, porque a sua intervenção não depende de pressões económicas ou políticas... movem-se por “amor à camisola”, dispensam protagonismos elitistas e a sua recompensa é a adesão voluntária das pessoas à causa que defendem e o reconhecimento pelo trabalho realizado. A satisfação íntima, e uma palavra de agradecimento, são as únicas retribuições que consideram adequadas pelo cumprimento dos projectos em que acreditam. Sei, contudo, que esta é uma forma altruísta de encarar a Cultura que nem todos compreendem...

Por isso, quando a Ana Margarida Dias, em Fevereiro de 2003, abriu o C@fé com Letr@s, em Cacilhas, vi ali uma oportunidade única de colocar em prática as minhas ideias e demonstrar que era possível desenvolver um projecto diferente. Imediatamente, lhe sugeri que me permitisse ali implementar um programa integrado que incluía a realização de iniciativas de natureza cultural diversificada, a título gratuito, sem quaisquer custos de funcionamento adicionais.

Dada a permissão indispensável, ficou assim lançada a semente para fazer daquele espaço um “fórum informal”, um centro de “convívio comunitário” com condições ideais para nele germinarem formas alternativas de pensar e fazer a cultura no concelho de Almada. Uma experiência gratificadora que durou quase quatro anos, mas que, infelizmente, por razões diversificadas, foi esmorecendo nos últimos meses e terminou, “sem apelo nem agravo”, com o encerramento do café, em 27 de Agosto do corrente ano.

Lutar contra a iliteracia, fomentar o prazer da leitura e, principalmente, incentivar o gosto pela palavra escrita, eram propostas demasiado ousadas... mas eu sempre gostei de um bom desafio e ultrapassar a banalização da cultura instalada era uma pretensão que me fazia querer ir em frente. O meu horizonte tinha apenas um limite: a disponibilidade de cada um dos colaboradores que se foram juntando ao projecto, na medida em que nenhuma das tarefas era remunerada.

Como toda a colaboração era gratuita e voluntária, os compromissos assentavam, sobretudo, nos laços de amizade que se iam estabelecendo, nas parcerias informais entretanto surgidas e na partilha de benefícios imateriais, entre os quais se destacavam a confraternização geracional e o convívio entre diversos tipos de público.

Enfim... afastava-se a solidão (havia até quem disse-se que as sessões de poesia eram verdadeiras «terapias de grupo») e, através da prática quotidiana de relacionamento entre pessoas tão diferentes (que provavelmente nunca se conheceriam se não fosse ali naquele café), aprendia-se a valorizar a individualidade de cada um e a criar uma nova identidade colectiva, inclusiva, mais participativa e em permanente reinvenção.

A programação cultural era ambiciosa. Incluía a realização de tertúlias (sobre temas da actualidade, da política à história local), de sketches de teatro, a inauguração de exposições temporárias (de fotografia, pintura e desenho), sessões de leitura em grupo (de poesia ou prosa – a «POESIA VADIA» tornou-se um acontecimento marcante na vida cultural de Cacilhas), apresentação de livros e revistas, whorkshops várias, feiras e mercados do livro, etc. ...

Foi neste contexto que idealizei um outro projecto mais específico, destinado a divulgar a poesia inédita dos clientes e amigos do C@fé com Letr@s... E, então, apareceu a colecção Index Poesis, com o objectivo de quebrar a rigidez das regras do mercado editorial a que só acediam os que tinham os conhecimentos certos ou dinheiro para investir.

Assim, para que a poesia nunca mais ficasse aprisionada nas gavetas da memória, ou esquecida em folhas de papel que ninguém lia, foram criados os cadernos «Uma Dúzia de Páginas de Poesia» (brochuras simples, de 12 páginas apenas) e, ainda, os «Marcadores de Leitura» e a série «Letras com o café», um poema para adoçar a bica, e que era oferecido todas as sextas-feiras e sábados a quem pedia uma chávena do dito.

Durante cerca de dois anos, esta iniciativa transformou-se no “porto de abrigo” para os poemas que uma série de clientes do C@fé com Letr@s se dispunham a partilhar entre si. E, curiosamente, acabou por ser, também, um convite à imaginação de quem escrevia incentivando muitos autores a produzirem mais e outros tantos a descobrir talentos que desconheciam ter.

Publicados ao ritmo da oferta (isto é, em função da quantidade de trabalhos que nos eram endereçados), estes cadernos, apesar de serem uma edição artesanal, rapidamente se tornaram numa das atracções mobilizadoras das sessões de «Poesia Vadia» (que se realizavam no último sábado de cada mês) onde eram apresentados.

Com uma tiragem adaptada ao nível da procura e de custos reduzidos (em virtude de o método de produção ser caseiro, ou seja, todas as tarefas do circuito eram executadas pela coordenadora, desde os contactos com os autores, à digitalização dos textos, grafismo, paginação, impressão, reprodução, dobragem e acabamento final) era possível, num curto espaço de tempo, um autor editar um “livro” de poesia, com a vantagem de o poder divulgar entre os habituais frequentadores do C@fé com Letr@s.

Como sempre fiz questão de frisar, a colecção Index Poesis era, apenas, uma forma diferente de comunicar, sem pretensões de excelência literária, onde cada poema tinha o peso das emoções e a qualidade que cada autor exigisse a si próprio. Por isso, todos os poemas eram aceites e tratados de forma igual… fossem de poetas consagrados, e com vasta obra publicada, ou de completos desconhecidos. Talvez por isso, num ápice, aos primeiros doze autores se juntaram mais algumas dezenas, alguns vindos de outros concelhos do país atraídos pela novidade do que se passava no C@fé com Letr@s de que iam sabendo através do respectivo blogue, entretanto desactivado.

O C@fé com Letr@s integrou o roteiro cultural do concelho de Almada, todos os meses vinha referenciado na Agenda Cultural do município, e através dos contactos que se foram multiplicando através dos métodos clássicos do “passa palavra” directo, ou aproveitando as inegáveis vantagens das novas tecnologias, foi possível estabelecer uma rede de comunicações mais flexível, desburocratizada e ágil: o seu jornal, a fanzine O Sabor das Palavras (o qual concebi, coordenei e onde desempenhava todas as tarefas da “cadeia de produção”: selecção de textos, grafismo e maquetagem, reprodução e acabamento final, quer da versão clássica, em papel, ou da versão digital), conseguiu chegar ao Porto e a Beja, por exemplo, onde tinha colaboradores regulares, e ultrapassou as nossas fronteiras, recebendo contributos do Brasil e de França.

Ainda que rudimentar, a presença na blogosfera revelou-se um veículo importante de promoção e divulgação dos artistas e escritores da região, e permitiu que mesmo aqueles que não tinham o dom da palavra falada (para se apresentarem a si próprios nas sessões de poesia) se sentissem com coragem suficiente para partilhar os seus textos.

Embora prosseguisse fins comerciais, o C@fé com Letr@s tornara-se um espaço da colectividade, apropriado socialmente, mas acabou por perder muito do seu carisma e notoriedade quando, por motivos de índole pessoal e profissional, me vi forçada a abandonar a coordenação da sua agenda cultural.

Sem querer destacar ninguém, não posso, contudo, deixar de citar alguns membros da vasta equipa que ao longo destes quase quatro anos possibilitou que ali se realizassem tantas e tão diversificadas actividades: Henrique Mota (da Associação de Cidadania de Cacilhas, O FAROL), Luís Milheiro (da SCALA, Sociedade Cultural de Artes e Letras de Almada), Carlos Guilherme (da Associação 25 de Abril), José Luís Guimarães (do IMAGINARTE) e António Vitorino (da fanzine Debaixo do Bulcão – poezine).

Finalmente, um agradecimento muito especial ao Fernando Barão, por ter acreditado, logo no início, que este projecto tinha potencialidades para se transformar naquilo que conseguiu ser, ajudando na programação de diversas iniciativas (algumas das quais por si dinamizadas), ao professor Alexandre Castanheira, pela colaboração prestada, e à Maria Rosa Colaço que, apesar de já muito debilitada pela doença que a havia de levar numa viagem sem regresso pouco tempo depois, ainda conseguiu encontrar forças para, numa amena conversa à mesa do C@fé com Letr@s, que recordarei para sempre, me dar alguns conselhos e deixar palavras de incentivo à continuação do projecto cultural que eu delineara.

Mas, atendendo a que este projecto assentou no trabalho voluntário e gratuito dos seus colaboradores (da organização aos artistas) tenho, ainda, de agradecer: à Ana Margarida Dias (proprietária do espaço); à Assembleia Distrital de Lisboa, a entidade onde exerço as minhas funções como Directora dos seus Serviços de Cultura (apoio logístico), ao Manuel Barão (concepção dos debates políticos), ao António Boieiro (projecto Doce Cicuta, em parceria com João Lima, entre outras acções, nomeadamente a dinamização das sessões de «Poesia Vadia») e ao Luís Miguel (que nos ofereceu o desenho utilizado na capa deste livro e sempre se disponibilizou para colaborar connosco)... e perdoem-me aqueles que ficaram por identificar, sejam os oradores dos vários debates e tertúlias, os pintores e fotógrafos cujos trabalhos tivemos a honra de expor, ou os escritores, poetas e amigos que participaram nas sessões realizadas. Sem eles nada do que atrás ficou dito seria possível de realizar.

A todos devemos, além da criação artística, um contributo imprescindível: a presença assídua nas várias iniciativas e a forma descomplexada do discurso, o que permitiu interessantes reflexões sobre todas as questões que foram sendo abordadas.

E, a terminar, não poderia deixar de agradecer os elogios que o Vereador António Matos, da Câmara Municipal de Almada, responsável pelo pelouro da cultura, sempre dirigiu a este projecto (alguns por escrito e que ainda guardo), assim como o apoio da Junta de Freguesia de Cacilhas que, desde início, deu o seu aval às actividades por nós realizadas publicitando-as nas respectivas instalações.



Cacilhas, 28 de Outubro de 2006
Maria Ermelinda Toscano