sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Circuito fechado

a fonte das lágrimas secou. também a das palavras.
o que resta de ti?
meter os punhos sangrentos na raiva dos dias
ruídos da cidade cega por modelar
argila pobre dos dias, massa lunar do silêncio
fragmentos da cidade cega, impossível o afecto
o que resta de ti?
amar o labirinto, abres os poros à sedução
de todas as contrariedades, amar o que é difícil.
fechas-te na sala oval do desespero e atrás
de cada porta o mistério. olha:
abre esta devagar, talvez seja o armário da poesia.

não dormes, pensas
o coração promete dar-te mais um dia.


(Maio 1995)
António Vitorino, Caderno nº 40

Eis as palavras articuladas

o nome de um poema é o mais importante do
[mundo
logo a seguir vem a carruagem do primeiro verso
e a do segundo e a do terceiro até formar o poema.
mas o que é um poema?
para que serve um poema?
o mundo não explica. a poesia não explica o mundo
serve-se das vísceras como água se fosse bebida
talvez. ainda ninguém sabe. ainda não há ciência.

eis as palavras articuladas.
(um pequeno deus arrisca a pergunta: para quê?)


(Maio 1995)
António Vitorino, Caderno nº 40

Lá em cima

eu sei que há gente sentada por cima de mim.
para isso sangrámos a ideia de avião
pássaro breve
voo perfeito
& tal.

vejo televisão
trituro a tristeza
agora quero descansar durante quinze dias
navego para o sol.

não. para a noite.

afinal, modelo-te no capitel
meu prisma dissonante.

olha:
um vídeo na cabeça é irreversível, não é?


(Outubro 1995)
António Vitorino, Caderno nº 40

E pronto agora já podes chorar

e pronto agora
encerraste os teus lírios na camera
obscura do esquecimento e pronto agora
ranges dentes apertas parafusos
no cérebro no torno regulas o torniquete
que evita o jorro de palavras necessárias
para que te possas entender quem és
quem pois estás a ser que peixes voadores
pululam teus tropismos ou teu sal
de lágrimas que evitas de águas perdidas
de silêncios na volta do fumo para casa
do mar. e pronto agora
agora já podes mudar a cor do rosto
e já podes apertar a porca regular o torniquete
da tua inquisição metódica teu índex
teu ódio teu pesar. e pronto agora
agora que desistes e te fechas no teu quarto
mostra ao mundo a massa de que é feito um poeta.
agora já podes chorar.


(Janeiro 1997)
António Vitorino, Caderno nº 40

A bomba da paz

todas as nações deviam ter uma bomba nuclear.
afinal
todos os supersticiosos
têm a sua moedinha da sorte,
não é assim?


(Fevereiro 1997)
António Vitorino, Caderno nº 40

Terceiro monólogo barato

os milagres da palavra, edição encadernada
papel de alto risco e delambida lombada.
de galáxias só milhões são vinte e três
de profetas só milhares, trinta e dois
de rimances muitas rimas, multidões.
outras contas de poetas: contas feitas trinta e três,
noves fora
quase nada.
compre cá. aqui o compre
calhamaço de palavra condenada:
enforcada nesta guita. o cordel não custa nada
e a prosa
é barata.


(Março 1997)
António Vitorino, Caderno nº 40

Segundo monólogo barato

por essas alvoradas da palavra
articulávamos severos sons:
poetas fomos.
depois, erguemos uma torre muito alta
e deus zangou-se.
é por isso que a poesia não vende:
porque não
e também não é passível de verter em outros
[moldes.
e trair é atrair a tradição,
não vá deus zangar-se novamente com os versos.


(Março 1997)
António Vitorino, Caderno nº 40