quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A besta

Para chegarmos lá, onde já estivemos
vai ser dura a luta, e mais que esta
vai ser preciso inventar outro país
construir pedra a pedra, dia a dia
palavra a palavra em agonias tórridas
gesto a gesto em caminhada intensa
o gosto de viver –

Mas muito mais que o gosto
tem de ser a madressilva e a hera
e muito mais que plantas, jardins largos
onde se dêem mãos e mentes limpas
assobiando ao ar e às brisas
a levantina arte de aprender
a sermos portugueses –

Mas muito mais que portugueses ser
teremos que viver em ordem e respeito
e tocar os clarões e oboés, as cítaras
de oito milhões de desesperados
de servos sem futuro e sem presente
de rastos e servis, corda ao pescoço

Para mostrar aos detentores do poder
que chegou a hora de tudo religar
tudo reaprender, inaugurar, medir
sem dinheiro, sem mentira, sem alarde
serenos como anjos de poesia
outras ideias de justiça, lealdade
com outros ideais de repelir o falso
com outras certezas de nunca fingir
que acreditamos neles ...

Para mostrar que nenhuma solução existe
na demagogia das usas touradas espanholas
nas prisões semi-abertas e fechadas
em que enjaularam o povo pervertido
neste bazar de doidos cadavéricos
neste pântano de gibóias e de gritos
onde atropelamos pais, irmãos, amigos
e rimos alarvemente como suínos
da nossa podridão infecciosa ...

Para chegarmos lá vai ser preciso a dor
de morrer pelo nosso Portugal vaiado
por este país de nojo e de repulsa
que engorda o monstro da incompetência
que aplaude a incultura e o mau gosto
que ofendeu a Língua para sempre
que cuspiu nossos heróis e mártires
e nos santos violentados nas prisões
e nos órfãos renegados e proscritos
e na Mulher ofendida e maltratada
debaixo do cadafalso da escrita
dos escrivães da penitência e da lisonja
do remedeio, desenrasca, analfabeto ...

Vai ser preciso fazer de nós exército
das armas do amor desinteressado
dos voluntários contra a estupidez
dos jovens sublimes e estudiosos
com bandeiras mais altas do que a lua
agitadas pelos ventos da razão
tremeluzindo ao sol da gente lusa
e voltar ao ponto de partida ...

Para chegarmos lá vai ser milagre feito
e muito mais reformas, que remendos
que charlatães com medo da verdade
que justifiças de rico e de falsário
vai ser necessário apagar as cinzas
plantar de estacas o homem verdadeiro
o que aprendeu, da terra a semente
e do livro, a luz magnificiente
e da vida, a solidariedade
o que está pronto a tudo pôr em causa
indo até à fusão do átomo na ajuda
a pôr de pé a lusitana gente ...

Que melhor morte podemos desejar
À besta irracional que nos governa?


Fernando Morais, Caderno nº 29

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