segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O dia acabara de nascer

O dia acabara de nascer,
e já atravessava o rio num cacilheiro,
com o ginjal em fundo
preso no olhar.

Uma voz vinda do coração quase luminosa,
dizia a custo:
- Sou um doente com sida,
estou cheio de fome.

A mesma frase ouvi-a repetir-se incessantemente
[vezes sem conta.

O seu braço alongava-se uma vez mais abandonado
[ao silêncio.

A mão abria-se em forma de concha e serena,
aguarda infatigável o peso de uma moeda.

Extenuada recolhia-se num sono breve sem sentido.

O mesmo gesto feito a todos com a mesma dignidade,
tendo como resposta
o silêncio imperturbável de quantos.

Finalmente uma moeda cai indiferente
na mão do menino de rua.

Sou um doente com sida,
estou cheio de fome.

Afigura-se-me o fim da viagem.

O eco da vida que se esvai aos poucos
entre duas margens.


Alberto Afonso, Caderno nº 36

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