quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Páginas memórias de António José da Silva (1705-1739)

1. Sou eu reduzido a uma criança
derradeiro viajante da memória achado à saída da
[nau “CALENDÁRIA”
virando inclinadamente nos argaços pelo Trópico
de Capricórnio entre os galeões
aportados ao largo do Rio de Janeiro
transparente e límpida cidade debruçada em
[planície
pelas paragens do antigo engenho arruinado entre
[os canaviais
de açúcar onde o tempo deixara finalmente de
[passar
naquela casa-grande abandonada: só a erva crescia
[lá fora

2. Consumo ainda a luz
deste lado do tempo onde plantei este
invólucro de cinza lançado ao ar
ânsias gestos poluídos me assassinaram
sem rodeios possantemente inquisidoramente
até descer a noite sobre este corpo a morte
a última venenosa marcha
Eis que a bruma soprada do Mar se mistura dentro
das vossas
projectadas para imolar a Água
ou mesmo tranquilizar o meu cristal de fogo
[intermitente

3. Os passos arrefecem descendo sob as pontes como
[lanternios
e os Noivos trazem flores de torangeira
desabando véus de incontidos néctares e espumas
[de trigo
sobre os ombros dos padrinhos
que ficavam à esquina a festejar
sem perceber já hoje como passou pelos rostos a
[lâmina da alegria

4. Acordam por mim as luzes de Hannouhah
Sou eu no fundo dos vossos dias nunca venho só
entre as vertentes da saudade que desci
[lentamente desde essa superfície
inabitada em quase trezentos longos anos

5. Fui revolta envolvente pressentida incapaz de reduzir a
[paz
vigilante servo da insubmissa luta crepuscular
de Israel com a margem angular das sombras

6. Olho deste país para os passos sob a chuva estreita

7. Fui de círio aceso até ao dobrar da esquina do claustro
desterrado galeão entre as pétalas da àgua que o
[mensageiro da morte
não fez mais que aportar à origem


António José Coutinho, Caderno nº 28

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